Toda a moral cristã só pode ser entendida em sua completude se ordenada de forma correta. Por isso é tão difícil julgar atos em si, como se eles fossem feitos isoladamente e pudessem ser analisados em laboratório.
Quando Judas indignou-se com o desperdício do unguento despejado por Maria aos pés de Jesus, o pretexto fora nobre: "Por que não se vendeu este unguento por trezentos dinheiros e não se deu aos pobres?" (Jo 12, 5). Mas o próprio evangelista reconheceu o cinismo de Judas, que revestia sua ganância de caridade, essencialmente escondendo a real motivação de seus atos.
Por isso os Evangelhos contrastam com frequência exemplos de atos concretamente maus mas que são redimidos com aqueles aparentemente bons mas que não tem substância. Do primeiro grupo temos a parábola do filho pródigo, da mulher adúltera, do publicano Zaqueu; do segundo, temos o próprio irmão do filho pródigo, os mestres da lei, Judas.
Ora, os detratores da Igreja julgam-na por ser condescendente com os atos aparentes das pessoas. Declaram a injustiça de se acolher aqueles que pecaram, o escândalo que é celebrar o retorno do maior dos pecadores, enquanto aqueles que andam em retidão permanecem sem pompa e fanfarra. Mas esquecem-se de que o "combinado" de Deus conosco não diz respeito ao com outros: "Amigo, não te faço agravo; não ajustaste tu comigo um dinheiro?" (Mt 20, 13).
Sabemos, porém, que as palavras de Cristo, embora revestidas de amor, são duras: "Esforçai-vos para entrar pela porta estreita (Lc 13, 24)". Onde está a contradição? Por um lado, parece que a Igreja acolhe a todos e falha em não louvar os que não caem; por outro, o Céu parece uma realidade excludente, onde lamentavelmente "muitos procurarão entrar, e não poderão".
Só podemos entender essa aparente contradição sob o aspecto de duas realidades: a primeira, que o homem, decaído, é pecador por natureza, e portanto essa passagem aqui na Terra é uma batalha travada até o último suspiro. A segunda, que as feridas adquiridas nessa guerra só podem ser redimidas se ordenadas para um bem maior, a saber, a configuração a Cristo.
Eis então o porquê de Jesus, o Deus encarnado, assumir uma atitude servil e lavar os pés dos discípulos, incluindo aquele que haveria de traí-lo. Podemos apenas imaginar aquele momento derradeiro onde Cristo, ajoelhado aos pés de Judas, fitou-lhe com os olhos vivos, enxergando-lhe através da alma corrompida, como se ali oferecesse uma última chance de arrependimento. No entanto, o mesmo Cristo que, na visão do homem representado pela figura do irmão do filho pródigo, humilhou-se frente a um pecador, irá mais tarde proclamar: "Bom seria para esse homem se não houvera nascido (Mt 26, 24)".
Até setenta vezes sete1, disse Nosso Senhor. Devemos estar dispostos a perdoar sempre, pois esta também foi a intenção de Jesus, mesmo com Judas. Não nos compete avaliar a retidão daqueles que se julgam arrependidos – nada escapará do juízo de Deus. Lembremo-nos de que o seu coração é manso e seu jugo suave, mas que se estamos no tempo da misericórdia, haverá de chegar o tempo de justiça2, onde nosso destino será selado e muitos implorarão que se molhem os dedos para que lhes refresquem a língua.
Para uma meditação mais aprofundada sobre essa trecho do Evangelho, leia O tormento do perdão.
Mais sobre as diferenças entre os tempos em Tempo de misericórdia, tempo de justiça.