Uma das características humanas mais desfigurada pelo Pecado Original é a capacidade de perdoar. De certa forma, o perdão nos parece algo estranho, ligado umbilicalmente à traição – uma ruptura na relação entre dois humanos que dificilmente se regenera.
É-nos tão custoso perdoar que o próprio Pedro parece querer ouvir da boca de Cristo palavras que lhe confortem: "Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei? Até sete? (Mt 18, 21)". Como se esperasse algo que aliviasse-lhe o fardo e a consciência, como se houvesse um ponto a partir do qual até mesmo Jesus diria "aí também já é demais".
Quando medito essa cena, sempre imagino Nosso Senhor olhando com ternura paternal a tentativa vã de seu apóstolo querido, que mais tarde receberia a graça de ser chamado de amigo. "Até setenta vezes sete, meu filho", deve ter dito Jesus com um sorriso. Também penso que Pedro provavelmente baixou os olhos, encabulado. Já devia saber disso em seu coração, mas fez um último esforço infantil na esperança que fosse poupado do tormento que é o perdão.
Mas Jesus sabe o quão difícil é essa realidade para nós; tanto é que não limitou-se às palavras, mas passou pela Cruz para dar o exemplo. Mais ainda, na hora derradeira falou para todos nós mas também para Pedro: "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem (Lc 23, 34)".
Somos chamados a imitar a Cristo, e isso significa assemelhar-se ao seu coração misericordioso. É claro que não é fácil, negar isso seria uma bobagem e incorreríamos em soberba. Mas é uma realidade tão importante que não foram poucas as vezes que Nosso Senhor alertou-nos sobre o amor ao próximo. Ame ao próximo como a ti mesmo. Vejas primeiro a trave que está em vosso olho. Perdoemos a quem nos tiver ofendido. Amai a vossos inimigos, etc.
Muitos, no entanto, valem-se das palavras de Jesus para, cinicamente, eximirem-se de suas responsabilidades, como se Cristo tivesse dado um alvará para fazermos o que bem entendêssemos. "Ora, não foi o próprio Cristo que disse 'não julgueis'?", dizem com malícia típica dos inimigos da Igreja. "Não andava o teu Deus com prostitutas e cobradores de impostos?".
Ao qual convém lembrar das palavras atribuídas a Fulton Sheen:
“The modern world permits everything and forgives nothing. The Church forbids some things but forgives everything.”
De fato, Cristo andava com pecadores, mas eles convertiam-se. "Vá, e não peques mais (Jo 8:11)", disse à mulher adúltera. Havia uma condicional, convenientemente suprimida por muitos que citam essa passagem.
Perdoar é, portanto, configurar-se a Cristo. Ele que, mesmo sendo Deus, padeceu por cada um de nós. Como podemos ousar não perdoar a alguém depois disso? Quando dobrarmos o joelho em Sua presença na hora do juízo, como poderemos justificar tamanha impaciência? Tu Senhor, és tão grande e fizeste tamanho sacrifício; eu, porém, sou pequeno e fui incapaz de perdoar... é o máximo que conseguimos. Reconheçamos a dificuldade de agir com santidade, mas não desanimemos de pedir a Deus que configure nosso coração ao d'Ele.
Adicionemos às nossas penitências quaresmais o propósito de sermos mais pacientes e compreensivos. Sempre que sentirmo-nos traídos por aqueles que confiávamos, ou humilhados pelos que nos desprezam, lembremos do Cordeiro que observou tristemente suas vestes serem repartidas, ergueu os olhos aos céus, e lamentou com o coração pesado mas transbordando de amor: "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem".