Algo que tem ocupado minha mente recentemente1 é a importância da literatura no desenvolvimento pessoal. Não necessariamente como um tópico de estudo, mas sim como influência comportamental.
Em Madame Bovary, Flaubert faz uma crítica à literatura excessivamente romântica, que amplifica os momentos bons e surrupia os inevitáveis momentos de angústia, depressão, dificuldade. Talvez seja por isso que os franceses e os russos se pareçam tão amargurados – o realismo de sua literatura veio como contraposição à utopia presente nos textos da época.
Já em O Vermelho e o Negro, Stendhal tem o cuidado de dizer que a senhora de Rênal "não lia muitos romances", e portanto não tinha aquela visão deturpada de alegria desmedida que parecia ser um vírus da época (e está claramente presente na sociedade atual). Não à toa o peso do adultério esmaga-lhe a consciência – um conflito puro entre o prazer de uma paixão verdadeira e o compromisso firmado com o matrimônio.
Da mesma forma, o herói Julien retorna da casa de seu amigo Fouquet impressionado pelas histórias românticas que ele conta. Julien, prospecto de seminarista, é uma versão mais ponderada da senhora Bovary. Sonha com altos arrebatamentos, tem delírios de grandeza, e aquelas histórias – assim como a trajetória de Napoleão – servem de combustível.
No caso do realismo francês, a crítica é evidente para os textos que são, de certa forma, corruptores da felicidade humana, uma vez que escondem os percalços e realçam somente o êxtase.
Não existe relacionamento feliz que não passe pelas privações da vida conjugal, pois ao se unir a alguém, você se une a sua alma, e consequentemente às suas aflições. Por mais felizes que sejam juntos, por mais feliz que você seja sozinho, esses momentos são sempre intercalados com privações, pois essa é uma realidade humana.
Não existe fuga para o campo, onde as pradarias verdes, o vento refrescante, o chilrear dos pássaros e o borbulhar dos rios completamente obliterem a saudade da família, o isolamento da sociedade, a pequenez dos vizinhos.
Enfim, a boa literatura precisa ser completa, ainda que preserve a visão do autor, ainda que as dificuldades sejam apenas ingredientes que façam a luta por aquele bem valer ainda mais a pena. Portanto, ludibriar o leitor a pensar apenas no lado positivo é, como mostra Flaubert, extremamente perigoso.
Evidente que essa forma de deturpação não parou no século XIX. Hoje, através de redes sociais, continuamos presenciando isso. Todos tem mais ou menos a noção de que muitos ali vivem uma vida fake, mas isso não impede que esse consumo se torne ainda outro vetor de depressão moderna.
Lembro-me particularmente de, nos anos de Carnaval, voltar à rotina com um profundo sentimento de vazio. O contraste entre a minha experiência e a que outros compartilhavam dava-me a impressão de não ter aproveitado o suficiente, o que àquela altura era um tanto deprimente.
Segue-se então que a literatura tem um compromisso com as virtudes humanas, uma vez que o escritor se propõe a capturar algo do universal, e transcrevê-lo para o particular, para aquela história, para aquele personagem. Corromper um universal é um ato vil, pois afasta o homem de sua humanidade, confunde-o.
Há, sim, uma grande responsabilidade nas costas dos autores. E naturalmente isso responde a comum objeção de que é melhor ler qualquer coisa do que não ler. Obviamente isso é tão verdade quanto dizer que é melhor comer qualquer coisa do que não comer, ou de que é melhor casar com qualquer um do que não casar, etc.
No entanto, se a literatura tem esse poder de corromper, quando má executada, pode também engrandecer, quando bem produzida. Aprender com os grandes escritores é como ter vários mestres apontando-nos a direção certa, sem deixar de ocultar seus obstáculos. É essa honestidade – de quem percebeu a realidade e suas mazelas – que nos faz, terminada a leitura, sair melhor do que começamos.
Texto escrito em 6 de Agosto de 2024.