Finalizei na noite de ontem1 o belo romance Madame Bovary, de Flaubert, cuja leitura foi acelerada muito por conta do final trágico, que suscita no leitor uma vontade de descobrir o desenrolar, e um esforço consciente meu de evitar as redes sociais após uma derrota do Vasco (incrível como tudo que precisamos é um pouco de incentivo.)
Não entrarei aqui nos detalhes técnicos da escrita de Flaubert, conhecido pela precisão de suas palavras, ou pelo exagero dos detalhes (que não são, de forma alguma, maçantes). Vou me ater às impressões do romance, e de que forma conecto a mensagem do autor com a minha própria carga imaginária.
Em primeiro lugar, Madame Bovary é uma história na qual praticamente só há anti-heróis. Ou seja, todos os personagens são, de certa forma, odiosos. É curioso como se escreve um livro onde você desgosta de todos os personagens, e ainda assim, ao juntá-los no caldeirão do enredo, a história é fascinante.
Emma Bovary, personagem principal, é a mais odiosa de todas. Se Flaubert queria retratar a mulher anônima de sua época, hoje qualquer um com mínima experiência de vida é capaz de encontrar Emmas por aí. Menos sofisticadas, sem dúvida, mas tão voluptuosas quanto. Na verdade, a volúpia das mulheres modernas é capaz de escandalizar a própria Bovary!
Digo isso não para escrachar por força de hábito a modernidade e os modernos, mas simplesmente pois o livro de Flaubert, recebido com escândalo na época, hoje seria um "passeio no parque". Madame Bovary é um exemplo daqueles romances que envelhecem bem, condição sina qua non de todos os clássicos.
Pois bem, mas o que faz Emma Bovary tão irritante? Ela é uma mulher bela, e portanto cede aos impulsos da serpente – torna-se manipuladora, vaidosa, orgulhosa, hipócrita. É tão incapaz de ver-se inferior a seus pares que literalmente prefere morrer a dá-los esse gostinho.
Emma Bovary é uma sonhadora – se vivesse nos dias atuais escreveria na sua bio ser uma “mulher intensa”, o que bons entendedores notariam ser um disfarce para uma pessoa entediada. Ora, na vida somos obrigados a conviver com a rotina, com a constância, e qualquer pessoa que viva de shots de adrenalina está se colocando numa posição muito perigosa, aquele estado de espírito que nos leva aos vícios, à droga, à dissimulação, à concupiscência.
Mas existe uma alternativa. Na vida, é muito melhor ser Chesterton do que Emma Bovary. Enquanto Chesterton via a beleza das coisas comuns, do sol que nasce todos os dias, da monotonia das estações, da arbitrariedade da árvore ser verde e do céu ser azul, Emma deseja o novo, o desconhecido, a paixão arrebatadora, aquele sentimento único descrito nos romances e que todos nós, em algum momento, experimentamos de forma tão fugaz.
Justamente por ser fugaz, Emma nunca está satisfeita. Já Chesterton, por adorar a monotonia, está sempre satisfeito. Enquanto Emma contempla o horizonte esperando algo acontecer, Chesterton contempla o horizonte vendo tudo acontecer. Emma espera um cavaleiro imponente surgir em um cavalo branco para resgatá-la, Chesterton escreve poesias sobre um cavalo branco que já o resgatou.
Todos nós, evidentemente, temos algo de Emma Bovary. Entediamo-nos, amaldiçoamos nossa sorte, nossa pequenez, tentamos transformar nossa realidade insignificante no centro de um romance. A diferença é a forma e a atitude que tomamos em direção ao nosso lugar do mundo. Seremos como Emma, eternamente enfastiada, amarga, melancólica e triste? Ou seremos como Chesterton, eternamente uma criança, agradecido, sanguíneo e feliz?
Madame Bovary nos deixa a lição de que, ao contrário do dito popular, sonhar pode sim custar caro. Custa caro quando corrompe nossa vontade, retira-nos da realidade, faz-nos achar que merecemos mais do que temos, como se pudéssemos arrancar do mundo algo que é nosso por direito. Não há problemas em sonhar, evidentemente. Mas o homem que aceita de bom grado o seu lugar, e tem a magnanimidade de perceber a beleza de seu microcosmo, esse homem será o protagonista de um romance muito mais feliz.
Texto escrito em 3 de Junho de 2024.