O artista na era das máquinas
A Inteligência Artificial veio para ficar. Como reagir a esse fato?
Recentemente o mundo ficou em polvorosa com uma atualização do ChatGPT que levou à perfeição a criação de desenhos, caricaturas, infográficos e imagens em geral aderindo a um determinado estilo artístico.
Rapidamente as pessoas começaram a retratarem-se em estilos famosos como Pixar, Simpsons, South Park, e – a maior febre de todas – no estilo do studio Ghibli.
Confesso que não conhecia as obras desse studio, embora artisticamente reconheça que é muito bonito. O tom simpático e afetuoso que a arte oriental dá a cada personagem combina muito bem com fotos de famílias, casais, filhos, etc. De certa forma, o estilo Ghibli retira a agressividade de uma composição.
Mas esse pacifismo inerente não impediu que muitas pessoas surgissem desgostosas, amarguradas que o trabalho de décadas de Hayao Miyazaki, co-founder do studio, pudesse agora ser replicado de forma despretensiosa e desleixada em questão de segundos.
Seria isso roubo? Plágio? Deveríamos boicotar essa tecnologia por ser uma afronta ao trabalho diligente de artistas talentosos?
Em primeiro lugar analisemos a parte prática da coisa. Uma vez que uma tecnologia está a disposição de tantos, por um custo tão baixo, a guerra já foi perdida. Não existem barreiras de entrada e mesmo que o OpenAI, que providenciou a ferramenta, decidisse remover essa feature devido a um lapso de consciência, a linha já foi cruzada e a demanda altíssima certamente faria com que cedo ou tarde alguma outra empresa menos virtuosa aproveitasse-se desse vácuo.
Em segundo lugar, analisemos a acusação de plágio, ou pelo menos de propriedade intelectual. Meu ponto aqui não é a questão jurídica da coisa, que por mais que exista é insuficiente. Um estilo não pode (ou não deveria) ser patenteado – seria o mesmo que patentear desenhos em palito ou aquarela. Sem dúvidas alguém, seja indivíduo, estúdio, comunidade ou sociedade, aperfeiçoou um estilo que marcou época e virou característico. Deveríamos nos entristecer com o fato de que outras pessoas possam replicá-lo? Que diferença faz se a réplica levaria 20 anos ou 20 segundos?
O cerne na questão está na intenção da arte. Em Cristianismo puro e simples, C. S. Lewis faz a seguinte observação:
Um pintor não é uma pintura, e ele não morre se sua pintura é destruída. Quando você diz: "Ele pôs muito de si nessa obra", só o que estará querendo dizer é que a beleza e o interesse que ela desperta saíram da cabeça dele. Sua habilidade não está na pintura da mesma forma que está na sua cabeça, ou mesmo em suas mãos.
O grifo é meu, mas creio que represente perfeitamente o que desejo dizer. Uma obra de arte vai além do meio utilizado para fazê-lo, a menos que você seja adepto do modernismo da "arte pela arte". Sem dúvidas, aqueles que vivem por esse lema estão em desalento, já que tudo que possuem são ferramentas e não intenção. Desse modo, qualquer um é artista, e portanto ninguém o é.
Existem duas formas de se encarar a realidade nessa era cuja tecnologia remove cada vez mais as barreiras de entradas: ou mais pessoas tornam-se artistas, uma vez que elas agora possuem meios que antes não possuíam, ou menos pessoas tornam-se artistas, uma vez que o que é considerado arte transcende ainda mais o que é ferramental, destilando a obra de tudo que é acidental e deixando-a cada vez mais próxima de sua essência.
De minha parte, acredito que essas duas formas estão corretas. O fato de uma tecnologia estar disponível permite que pessoas munidas de sagacidade e que tenham um olho para o artístico, mas não disponham do ferramental necessário, possam expressar-se como antes não conseguiriam. Alguns diriam que isso é democrático; prefiro outros termos, mas não posso deixar de notar a ironia do fato de que muitos dos artistas afetados são verdadeiros devotos da democracia.
Também, quanto mais nivelamos o jogo em questão de acesso a ferramentas, mais diferenciados se tornam aqueles com maior vocação artística. Mais originais precisam ser, menos se esconderão atrás da estética. Em suma, precisarão cada vez mais se aproximar do ser da coisa, da verdade escondida.
Por que replicar Ghibli incomoda tanto os artistas? Provavelmente porque tiram deles a exclusividade de fazer o que menos importa: surpreender pela forma. Evidente, quando uma forma é adequada e um estilo nasce, como aconteceu com a arquitetura barroca, ou as igrejas góticas da Idade Média, aquilo é copiado enquanto meio de se passar uma mensagem.
Devemos, pois, nos importar menos com a forma e mais com o conteúdo. Celebremos aqueles cuja originalidade nos leva a estilos novos, mas não esqueçamos que o estilo em si pouco importa. Não tenhamos medo de que a Inteligência Artificial banalize a arte, da mesma forma que não banalizou os livros; ou algum escritor se sente ameaçado pelo modo cada vez mais senciente que as IAs se expressam? Não há porquê – ali não há intencionalidade, são palavras recortadas e coladas de forma que façam sentido, como antecipou Jonathan Swift em um dos experimentos presenciados por Gulliver1.
Sempre houve as "máquinas de falar", e agora há surpreendentes "máquinas de desenhar". Mas sempre poderemos reivindicar a exclusividade de sermos "máquinas de pensar".
Falei sobre As Viagens de Gulliver em A Máquina de Falar.