Confesso que ao ler As Viagens de Gulliver demorei um pouco para entrar na história. Embora tivesse sido alertado de sua ironia mordaz, a qual confesso ter demorado um pouco a compreender, o estilo de Jonathan Swift é único.
Por falta de repertório cultural – ainda que seja compreensível ignorar particularidades da política europeia, em particular a britânica, nos tempos atuais – a perspicácia do autor me passou um tanto despercebida.
Ainda assim, não pude deixar de admirar sua criatividade exemplar, capaz de maravilhar escritores do calibre de C. S. Lewis. Entre nomes estranhos e povos imaginários, é difícil não perceber as tiradas e ironias que feitas ao longo da história.
Minha impressão é que Swift vai ficando mais à vontade à medida que a história se desenrola, fazendo críticas cada vez mais claras, como se perdesse a paciência em ocultar sua irritação com o estado das coisas.
Em um dos episódios, vivendo como um bicho de estimação de sua protetora gigante, Gulliver (o personagem principal) faz o papel de uma espécie de grilo falante na corte de Brobdingnag. O rei daquele lugar, homem sensato e estudioso, ouve com atenção as histórias daquele pequeno inseto sobre a política europeia. Alheio à condescendência que lhe é dispensada, o náufrago segue seu relato embebido de orgulho, para finalmente ouvir da boca do rei como os sábios da Europa na verdade eram seres desprezíveis.
Gulliver carrega uma espécie de nacionalismo ingênuo e fé cega no progresso, o que fica ainda mais claro quando ele visita os projetistas de Lagado. Talvez numa das melhoras cenas do livro, os intelectuais daquele lugar vão apresentando suas invenções – todas inúteis – jurando que o sucesso está a uma doação de distância. Aqui Swift é ainda mais claro em criticar ironicamente o otimismo ilusório daqueles inventores, bem como o ostracismo que é reservado àqueles que ousam duvidar da eficácia de seus métodos.
Mas uma cena em particular faz valer todo o livro (que ainda não terminei). É quando Gulliver visita um inventor que criou uma máquina capaz de reordenar as palavras, na expectativa de que elas façam algum sentido. Essa máquina de falar é puramente signo, e zero referente. Swift deixa claro o pensamento da época: palavras que pareçam fazer sentido, ainda que elas não digam nada, tem o mesmo valor, se não maior, que aquelas formadas pela força do gênio.
Não conheço muito da vida de Swift, mas julgando pelo seu humor britânico, creio que ele não resistiria a deixar escapar uma risada irônica ao perceber que a máquina descrita há 300 anos, fruto de sua imaginação aguda, se tornou onipresente, e que as obras modernas se preocupam muito em juntar palavras, e pouco em julgar se elas fazem algum sentido.
“Todos sabiam o quanto era trabalhoso o método usual de aprender as artes e ciências”, diz Gulliver. E portanto concebeu-se uma máquina inteligente o suficiente para produzir resultados artificiais, sob aplausos de todos que tem preguiça de pensar, mas desejam como nunca parecer tê-lo feito.