Na última carta aludi ao momento onde Jesus finalmente se revelaria aos judeus. Esse momento definidor é retratado no Evangelho de hoje. Para entendermos de forma correta, é necessário voltar ao livro do Êxodo.
No capítulo 3, Moisés apascentava as ovelhas quando Deus surgiu na sarça ardente. Aquela visão foi tão extraordinária que ele teve medo. Porém, Deus prometeu guiá-lo contra o Faraó e libertar o povo de Israel. Relutante, Moisés perguntou: "mas quando me questionarem quem me enviou para libertá-los da escravidão, que direi?". E Deus pronunciou as palavras que nenhum fariseu desconhecia:
Eu sou o que sou. Assim dirás aos filhos de Israel: eu sou me enviou a vós. (Exôdo 3, 14).
Imagine você como essa visão aterradora não deve ter se transmitido vividamente de geração em geração por aquele povo. Deus, cuja voz retumbante saía daquele arbusto em chamas, prometeu a libertação do povo de Israel e revelou ser aquele que é. Sem dúvidas esse mistério assombrou muitos judeus naquele tempo. Se seguirmos a leitura, Deus continua:
Assim dirás aos filhos de Israel: O Senhor Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó, me enviou a vós; este é meu nome eternamente, e este é meu memorial de geração em geração. (Êxodo 3, 15).
Fica claro, pois, que Deus está acima de Abraão, e que seu nome – eu sou – ressoará por todos os tempos. Portanto, não há de se espantar que, quando Cristo diz que "vosso pai Abraão exultou, por ver o meu dia (Jo 8, 56)", há uma clara relação de hierarquia. Jesus é, enfim, o Deus de Abraão revelado a Moisés na sarça ardente.
Como os judeus pareciam ainda não entender ("nem sequer cinquenta anos tem, e viste Abraão?"), Jesus pronuncia a palavra fatal, definitiva; ali ele sela seu destino e desanuvia nossa inteligência; ele se revela com o mesmo retumbar que Moisés ouvira, e naquele instante os fariseus entenderam tudo:
Em verdade, em verdade vos digo, antes que Abraão existisse, eu sou. (Jo 8, 58).
Essa frase que entraria para a história provoca a fúria dos fariseus, e Jesus precisa fugir para escapar da morte. Ainda não havia chegado sua hora.
Há um material riquíssimo para meditação nessas poucas palavras de Cristo. Como disse, ele finalmente se revela em sua plenitude: ele é Deus, o mesmo Deus do Velho Testamento, que agora entrou na história para nos redimir. Por outro lado, ele também se coloca fora do tempo pela própria construção verbal da frase.
"Eu sou aquele que sou" soa estranho pois não costumamos construir a frase desse jeito. Diríamos "eu sou aquele que fez X", ou "eu sou aquele que você prometeu Y". Em ambos os casos, remetemos a um momento passado. Deus, no entanto, é, imutável, por todos os tempos.
Para entendermos essa aparente contradição precisamos compreender que tempo é uma medida de mudança; assim como metro é uma medida de distância. O tempo só faz sentido no contexto de algo mutável. Ora, as coisas da natureza mudam: nascem, crescem, envelhecem, morrem. Precisam ser cuidadas. Deus não. Ele é aquele que é.
C. S. Lewis, no capítulo 3 do livro 4 de Cristianismo puro e simples, utiliza a seguinte ilustração: se imaginarmos o tempo como uma linha reta, então podemos imaginar Deus como a página toda em que a linha está traçada. Ele está fora da linha, ao mesmo tempo que abarca-á por completo. Ele sabe o que acontece em cada instante t desde a eternidade, ou seja, aquele lugar onde não há tempo.
Diz o autor britânico (que publicou Mere Christianity em 1952): "Sua vida não é um driblar de vários momentos como a nossa: para ele, por assim dizer, ainda é 1920 e já é 1960. Pois ele é o próprio existir. Lewis ecoa as palavras de Deus: "Eu sou o que sou", e explica as de Cristo: "Antes que Abraão existisse, eu sou".
O mistério do tempo não é mero fetichismo teológico. Primeiro pois Deus julgou isso tão importante que revelou a Moisés e reforçou por meio de Jesus. Segundo que essa noção de Deus extra tempus et spatium significa que tudo que existiu, existe e existirá – inclusive você e eu – foi pensado por Deus desde a eternidade. Somos suas criaturas, criados por amor e para amá-lo.
Por isso o tempo da Quaresma é tão oportuno. Estamos aqui por vontade de Deus, literalmente. Ele quis oferecer-nos uma nova chance de redenção nesse ano; dotou-nos de vontade para que nos alinhássemos à dele. Reconheçamos o seu poder e divindade, mas diferentemente dos fariseus, não busquemos apedrejar o Cristo que se revela a nós.