O Evangelho de João de hoje lança luz sobre um dos temas que mais comumente confundem a mente daqueles que buscam entender o cristianismo: como reconciliar o Antigo e o Novo Testamento?
Quando analisamos essas duas "etapas" da história, à primeira vista pode parecer forçoso dizer que retratam a mesma realidade. Ora, enquanto no Velho Testamento presenciamos um Deus furioso e irascível, que virá "horrendo, com furor e ira ardente (Is 13:9)", os Evangelhos parecem contar uma história bem diferente – Deus é amor, compassivo.
Tão aparentemente distintas são essas duas realidades que originou uma heresia chamada Marcionismo. Nela, um sujeito chamado Marcião ensinava que haviam dois deuses: o cruel do Velho Testamento, e o bondoso do Novo. Evidentemente tal doutrina foi considerada como herética pela Igreja primitiva (notavelmente por Tertuliano).
Entretanto, Jesus hoje diz com clareza: "as Escrituras dão testemunho de mim (Jo 5, 39)". Ora, não havia Novo Testamento quando Jesus ensinava aos judeus, portanto Ele está didaticamente revelando ser a chave das Escrituras. Como se não bastasse, mais adiante Jesus reforça: "Se acreditásseis em Moisés, também acreditaríeis em mim, pois foi a respeito de mim que ele escreveu (Jo 5, 46)".
Não canso de me espantar como ideologias modernas, quase sempre fundadas em heresias antiquíssimas, são facilmente refutadas ou desmontadas pelos textos canônicos. Aqui, tudo se ilumina: Jesus é o Antigo e o Novo Testamento, ele é a Bíblia, e somente sob esse aspecto somos capazes de entendê-la em sua profundidade.
Joseph Ratzinger diz em O uso da Escritura no Catecismo que existem 4 sentidos em um texto bíblico: literal, alegórico, moral e anagógico. O papa expande sobre o sentido alegórico (grifo meu):
Infelizmente, este termo, [hoje] desacreditado, nos impede de captar exatamente de que se trata: na palavra de então, [situada] numa determinada conjuntura histórica, brilha de fato um caminho de fé que coloca este texto [em particular] na Bíblia como um todo e, para além daquele tempo, o orienta sempre a partir de Deus e para Deus.
Em outras palavras, existe uma dimensão inteira da Bíblia que só pode ser captada se percebida "a partir de Deus e para Deus", ou seja, tomando Jesus como autor e referente. É sobre Ele que dizem as Escrituras, e é por Ele que o conhecemos.
Portanto, Jesus escancara a ignorância dos judeus, e por conseguinte, expõe todos os modernos que não percebem a realidade inteiriça das Escrituras. Os judeus alegravam-se com João Batista e respeitavam Moisés – mas não entendiam que esses homens foram apenas candeeiros, e que a verdadeira luz se apresentava diante deles.
Alguns capítulos adiante, em Jo 8, 58, Cristo continuará com suas revelações: "em verdade, em verdade vos digo que antes que Abraão existisse, Eu sou." Esse trecho é importantíssimo pois chocou os judeus, já que eles tinham em mente o famoso trecho de Exôdo 3, 14: “Eu Sou o que Sou.” Disse mais: “Assim dirás aos filhos de Israel: Eu Sou me enviou a vós.”1
Eis a catequese e a chave de leitura das Escrituras: Deus, aquele que É, fez-se carne na pessoa de Jesus Cristo. Todos os textos bíblicos fazem menção a Ele, seja de forma literal ou alegórica. Somente consciente dessa realidade, feita óbvia pelo próprio Jesus, que é Deus, podemos entender as Escrituras. Aproveitemos a Quaresma para meditar sobre esse fato, implorando que por meio da graça sejamos dignos de compreender aquilo que Cristo veio ensinar, e diferentemente dos fariseus daquele e do nosso tempo, reconheçamos a autoridade do Verbo Encarnado.
“Ehyeh Asher Ehyeh” em original no hebraico.