Três formas de se relacionar com o dinheiro
Lições de Michel de Montaigne para o homem moderno.
Conta-nos Montaigne em seu ensaio “O bem e o mal só o são, as mais das vezes, pela ideia que deles temos”, que sua vida adulta foi composta de três fases no que tange ao relacionamento com o dinheiro: uma primeira onde ele pouco tinha, uma segunda onde muito economizava, e uma terceira onde era mais indiferente.
Antes de esmiuçar cada uma das três fases, um contexto é necessário. Nesse capítulo, à moda dos estóicos, Montaigne reflete que muito do que consideramos dor é na verdade uma percepção, e portanto pode ser treinada para ser mais ou menos sentida (aqui ele faz uma atualíssima observação sobre a dor das mulheres na busca pela beleza, o que nos relembra que a vaidade feminina não é um fenômeno moderno).
Portanto, ao falar do seu relacionamento com o dinheiro, Montaigne está deixando claro que em cada fase o que mudou foi a sua própria percepção da importância dada ao dinheiro, causa eficiente do prazer ou dor causado pela coisa em si.
Pois bem, na primeira fase de sua vida adulta, por cerca de 20 anos, Montaigne viveu com pouco dinheiro, valendo-se da caridade dos amigos e de dinheiro emprestado. Gastava com certa frivolidade, mas tinha firmeza para honrar os compromissos, o que por vezes rendeu-lhe a prorrogação do empréstimo "porquanto meus credores se comoviam com meu esforço".
Ainda que vivesse nesse estado de incerteza, Montaigne confessava ser muito mais feliz do que quando adotou uma postura mais racional e previdente. "Não se lembram de que a maior parte dos homens assim vive", diz dos que se desesperam frente à possibilidade de uma vida menos estável. Além do mais, "o destino tem em suas mãos cem meios de abrir uma brecha na riqueza para a entrada da pobreza".
É claro que quanto mais dinheiro, menores são essas oportunidades. Mas o ponto do autor é destacar que nunca estaremos livres dela, de modo que é inútil desesperar-se por isso. A constante preocupação com o amanhã tira do homem a vontade de viver o hoje. "Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas?" (Mt 6:26).
Quando finalmente obteve dinheiro, Montaigne inaugurou a segunda fase de sua vida, quando "tomando gosto nisso, não demorou a criar reservas". O problema é que, perturbado por qualquer eventualidade que poderia acontecer, começou a juntar mais e mais de modo a comprometer-lhe o espírito. Valendo-se da racionalidade, argumentava que mesmo que não pudesse se defender de todos os golpes do destino, poderia ter uma reserva capaz de protegê-lo da maioria delas, ou das mais prováveis.
O problema é que essa atitude começou a torná-lo uma pessoa apreensiva. "Eu, que falo tão livremente de tudo que me diz respeito, não falava a verdade quanto ao dinheiro que possuía". O dinheiro tem esse estranho poder de transformar as pessoas, torná-las insinceras e constrangê-las, desconfiadas como cães à mera menção do assunto, como se fosse seu segredo mais impenetrável.
O dinheiro acabou, portanto, transformando-se em seu mestre. O testemunho sincero do autor mostra que séculos se passam mas as angústias dos homens permanecem as mesmas:
Se viajava, parecia-me sempre não estar suficientemente provido de dinheiro e quanto mais levava comigo tanto mais preocupado me tornava, já por causa da insegurança das estradas, já porque não depositava confiança na fidelidade da criadagem encarregada das bagagens. Se deixava meu cofre em casa, quanta suspeita e inquietação, tanto piores quando não podia confessar-me a ninguém.
A conclusão, que vem como o suspiro de um homem derrotado, é forte: "Afinal de contas guardar o dinheiro dá mais trabalho do que ganhá-lo".
É importante notar que Montaigne não condena a temperança ou a prudência, mas alerta para a dificuldade de se estabelecer "limites precisos para essa mania de entesourar". Reconhece o autor: "Vamos sempre ampliando o que acumulamos e fixando tais limites, sempre mais alto, a ponto de nos privarmos pouco honrosamente do gozo de nossos próprios bens, guardando o total sem usá-lo."
Essa tendência ao "entesouramento" é algo de que padeço, de modo que as palavras de Montaigne me soam eerily familiar, especialmente nesse desejo contínuo de guardar sempre mais, fruto de minhas (des)venturas pelo mercado financeiro, que como fichas num cassino, me estimulava a acumulá-las, nem que fosse para observar quão belas são quando amontoadas.
Montaigne também nos avisa de algo óbvio e que somente o cinismo barato nos faz descreditar: "Todo indivíduo possuidor de muito dinheiro tem tendência para a avareza". Evidentemente existem aos montes exemplos contrários, razão pela qual ele faz questão de incluir a palavra "tendência", mas é algo real e observável, e que precisa ser reconhecido para poder ser evitado.
Por fim, o autor descreve sua terceira fase, "certamente mais agradável e normal", onde o relacionamento com sua renda beira a indiferença. Rendas e despesas "sobre-excedem-se ao acaso", ciente de que não há provisões capazes de conter toda sorte de imprevistos. Dessa forma, vive-se de forma muito mais saudável, se não materialmente, mas espiritualmente.
É claro que existe em nós brasileiros um ceticismo incorrigível, um cinismo hereditário, que em maior ou menor grau argumenta que "sendo rico é fácil dispensar dinheiro". Além do mais, Montaigne não nos dá maiores detalhes do seu real desprendimento, uma vez que ele conta histórias de fortunas doadas para se aliviar a consciência e, ao que me consta, não se arriscou a fazer o mesmo (talvez não tenha se curado completamente). E embora o nível de desprendimento e previdência irá variar para cada um, afetado por condição social, traumas e temperamentos, sua mensagem me parece extremamente adequada.
Preocupamo-nos demasiadamente com o dia de amanhã, e buscamos aquilo que não temos. Em minha experiência, o ganho marginal de "felicidade" à medida que se acumula dinheiro decresce mais e mais, de modo que após certo ponto passa a ser contraproducente acumular. Pior, criam-se demandas artificiais para justificar um acúmulo ainda maior, que servem apenas de status porquanto não trazem benefício algum.
É de extrema importância notar que, a despeito das tendências à avareza já mencionadas, o dinheiro em si não é bom nem mau. Diz Montaigne:
A fortuna não nos outorga o bem ou o mal, ela se limita a fornecer-nos os elementos do bem e do mal, os quais nossa alma, mais poderosa do que ela, trabalha e aplica como lhe apraz, tornando-se dessa maneira única senhora e causa de nossa condição.
Cabe a nós, portanto, darmos à fortuna o tratamento adequado, o que só acontecerá frente a uma fortificação da virtude, que é a saúde da alma. Eis a chave do bom relacionamento com o dinheiro: cuide da sua alma diligentemente, e os "limites para o entesouramento" surgirão sem que você o perceba.