Por que devemos dominar a linguagem? Essa é uma pergunta pertinente cujas alternativas podem ser desastrosas.
Existe uma vertente ideológica que condena os formalismos da linguagem como um instrumento de opressão; como se escrever certo fosse uma espécie de elitismo, uma exclusão dos mais pobres e ignorantes do debate público. Nesse sentido, a língua se torna uma jaula, e apenas o que importa é a mensagem transmitida, independente da sua aderência às regras ortográficas e gramaticais.
Essa abordagem, tipicamente marxista, pode ser observada nas mudanças reivindicadas mais recentemente pelos proponentes da ideologia de gênero, e também ficaram evidentes durante o período que Fernando Haddad (o próprio) foi ministro da educação (pois é).
A tragédia, no entanto, é que o oposto é verdadeiro. Não é que o domínio da linguagem seja uma forma de exclusão, mas sim que sua falta é um instrumento de alienação.
Para ilustrar esse fato, analisemos dois contos russos bastante famosos: O Capote, de Nikolai Gogol, e Mumu, de Ivan Turgenev.
Em O Capote, o funcionário público Akáki Akakievitch passa a vida a copiar documentos oficiais. De fato, Akáki vive para isso e encontra nesse simples ato sua realização plena. Um dia, como recompensa pelo bom trabalho, Akáki recebe uma missão diferente de copiar: nesse momento ele começa a suar frio, fica desconcertado, e implora para voltar a fazer o que sabe de melhor.
Por conta do frio de Petersburgo, o funcionário, que vive numa pobreza resignada, junta a duras penas alguns rublos para confeccionar um capote sob medida. Quando finalmente chega ao escritório portando sua nova aquisição, seus companheiros, acostumados a fazerem-lhe troça, ficam admirados – era de fato um belo casaco. Akáki é convidado para uma festa da repartição, e, dessa vez, impulsionado pelo sopro de vida trazido pelo capote novo, decide ir.
Chegando lá o funcionário é recebido com alegria e festejado. Feliz, Akáki parece finalmente ter descoberto sua personalidade. No entanto, ao regressar para casa, ele é assaltado – e tragicamente tem o capote roubado. Aquilo que representara seu token de entrada para o mundo real lhe é arrancado, e o funcionário cai na mais profunda depressão.
Eis a tragédia: ao buscar ajuda de um figurão do alto escalão da burocracia para recuperar o item perdido, Akáki não consegue articular as palavras. Tão acostumado a copiar ideias prontas e sem a prática de expor as suas, as frases saem entrecortadas, sem nexo. O figurão enxota-lhe com impaciência, e sem ter mais a quem recorrer, o funcionário adoece e morre.
Existe uma fina ironia no texto de Gogol. Akáki não tem voz própria, não possui personalidade, é um completo alienado. A mera perspectiva de fazer algo diferente, original, lhe é aterradora. Quando chega o momento de expor seus sentimentos e pedir por socorro, não sabe como fazer e termina esmagado pelo sistema, incapaz de articular suas necessidades.
Essa é também a história de Gerasim, personagem principal de Mumu. Muito mais alto que o comum, e com a força de quatro homens, Gerasim é, no entanto, surdo-mudo. Nascido como servo de uma família aristocrata russa, Gerasim (que se tivesse sido concebido por Tolkie seria uma espécie de troll), é levado do campo, onde trabalhava com gosto, para se tornar uma espécie de porteiro em Moscou.
Incapaz de vocalizar suas preferências, só lhe resta aceitar, resignado, seu destino. Na casa grande, com muito mais criados que o necessário, ele se afeiçoa por uma outra serva, que termina oferecida em casamento (pela senhora da casa) de forma leviana a outro homem e deixa a propriedade. Entristecido, Gerasim adota uma cadela, Mumu, a quem se apega tremendamente.
Tudo corre bem até o dia em que Mumu ameaça morder a mão da old lady. Humilhada, só lhe resta fingir afetação e ordenar o sumiço do cachorro. Mumu é levada para a cidade, mas, fiel, dá um jeito de retornar ao seu dono, que passa a escondê-la. Uma noite, porém, seu instinto animal lhe traem e seus latidos impedem a senhoria de dormir. Não há mais o que se fazer: é necessário que Mumu seja executada.
Gerasim toma sobre si a tarefa de afogar o cachorro, mas nunca mais seria o mesmo. Retorna para a roça à revelia de sua senhora, onde ostentará para sempre um olhar triste e uma atitude desconfiada. O gigante russo, forte e temido por todos, é incapaz de impor sua vontade por não saber se expressar. Turguêniev simboliza de forma clara a alienação do povo camponês, que não sabia a força que tinha, e aceitava os desmandos da aristocracia com passividade. Estava ali prefigurada a revolução que viria anos mais tarde.
Os dois contos, contemporâneos, denunciam a opressão que aquela classe sofria, menos pela malícia da casta superior do que pela iniquidade dos oprimidos. Gogol e Turguêniev convocam a população a tomarem consciência e articularem suas necessidades – e isso só é possível através do domínio da linguagem.
Não é irônico que essas reivindicações, originalmente de cunho socialista, sejam sabotadas hoje em dia pelos mesmos? Um cínico diria que, agora que estão no poder, a alienação do povo pela linguagem se tornou conveniente, e excluí-los da alta cultura é necessário. Já imaginou se terminassem por descobrir o que os russos do século XIX diziam? Ainda bem que não é o meu caso.