"You have really convinced me to read this book". Normalmente eu não daria bola pra esse fato, se meu interlocutor não fosse russo e o livro em questão Os demônios, de Dostoiévski.
Não que eu tenha tentado convencê-lo. Apenas discursei passionalmente sobre a presciência do autor russo, sua argúcia ímpar e capacidade de antever o futuro baseado no Zeitgeist. Em certo momento devo ter até esquecido que havia ali outra pessoa; louvando ininterruptamente a capacidade de certos escritores de captarem um pedaço da realidade (minha esposa sofre muito com isso), e provavelmente essa apologia desinteressada foi o pitch perfeito para um russo ocidentalizado.
Seria, portanto, uma pena deixar de lado esse discurso sincero e eficiente. Por isso o tema desse ensaio será o romance Os demônios, publicado por Fiódor Dostoiévski em 1872.
Os demônios é classificado como um romance assumidamente panfletário do autor russo, no sentido que ele desejava retratar um acontecimento político real de seu tempo, e que causou-lhe impressões profundíssimas: o assassinato do estudante Ivan Ivanov por uma célula terrorista liderada por Sergei Nietchaiév – que havia bebido das teorias de Mikhail Bakunin, famoso líder anarquista russo que propagou suas ideias em círculos revolucionários pelo ocidente.
À época, os revolucionários russos se distanciaram e até condenaram as ações de Nietchaiév, que foi rapidamente considerado um lobo solitário (rings a bell?). Não para Dostoiévski. Impressionado com a frieza do ato, e perspicaz o suficiente para notar a conexão umbilical entre as ideias revolucionárias que fervilhavam em seu tempo e o ato terrorista, o autor decidiu-se a retratar o ocorrido, "ainda que isso arruinasse-lhe a reputação literária".
Não só não arruinou, como Os demônios entrou para a história como um dos romances mais proféticos de seu tempo, antecipando em 30 anos o niilismo de Nietzsche – assustadoramente presente no personagem Kiríllov – e em 50 anos os regimes totalitários de Stálin e Hitler.
Isso só foi possível pois Dostoiévski era dotado de uma honestidade intelectual incomum. Buscava em seus antagonistas seus melhores argumentos, e transformava-os em personagens humanos, representativos de grande parte da sociedade. Diga-se de passagem, um dos maiores desastres de filmes e livros modernos é sua total incapacidade de construir uma história verossímil, na maior parte das vezes uma mera peça de propaganda infantil, onde em 5 minutos é possível identificar com precisão toda a cosmovisão dos autores. É o extremo oposto do que se encontra nas obras do russo.
Por analisar as origens das ideias, Dostoiévski foi capaz de antecipar suas consequências como quem resolve uma equação. Para ele, a frieza desumana inerente ao círculo dos livre-pensadores era uma feature, não um bug. Essa frieza, consequência lógica do abandono de Deus, desaguaria depois no marxismo, comunismo, cientificismo e ideologias correlatas.
É particularmente interessante a dinâmica entre os livre-pensadores de seu tempo e os humanistas, embate caracterizado no livro pelos personagens de Piotr Stiepánovitch (representação do anárquico Nietchaiév) e Stiepan Trofímovitch, seu pai ficcional. Stiepan é um liberal à moda antiga, "herdeiro do iluminismo russo" nas palavras de Erik Von Kuehnelt-Leddihn. Entremeia seus discursos de francês, e personifica o arquétipo emasculado do intelectual que nunca conclui sua obra, condescendente com os jovens à lá Settembrini (A Montanha Mágica).
Piotr, por outro lado, é da geração seguinte, ressentida da inépcia de seus pais intelectuais, e influenciada pelo viés desconstrutivista de sua ideologia, alérgico a qualquer tipo de autoridade que pudesse ser justificada de forma natural. Dostoiévski inclusive faz questão de ressaltar essa erosão da hierarquia social ao incorporar à história protótipos feministas e o divórcio como uma opção natural das "pessoas livres".
Em uma das cenas onde fica claro o desprezo do filho pelo pai, Stiepan Trofímovitch esboça sinais de arrependimento ao reagir a um livro contemporâneo de Piotr Stiepánovitch:
‘’Posso até assumir que a ideia fundamental do autor seja verdadeira”, dizia-me com fervor, “mas isso só faz piorar a situação. Afinal, trata-se tão somente da nossa própria ideia; fomos nós quem a primeiro cultivamos, e esteja certo de que ela não teria se desenvolvido, ou achado seu caminho, sem nosso zeloso auxílio – o que poderia ser acrescentado a ela, além do que já dissemos? Céus! Como puderam desfigurá-la dessa forma?”, ele exclamava, tamborilava no livro com os dedos. “Eram essas as conclusões que antecipávamos? Quem poderá compreender a ideia original disto?”
Apesar de considerá-lo "pai intelectual" dos revolucionários que tanto temia, fica claro que Dostoiévski de certa forma "perdoava" os liberais. Mais ao final do livro, ironicamente, Stiepan finalmente tem contato com o povo, os mujiques de que tanto falava, mas jamais havia visto. O autor anunciava uma nova profecia: a do intelectual de esquerda preocupado com os pobres mas que nunca tivera contato com um.
Se Dostoiévski tivesse se limitado às profecias políticas, o livro já teria sido excelente. Mas em Os demônios ele foi além: profetizou o que aconteceria espiritualmente com a sociedade. Sempre atento aos discursos de seu tempo, foi no niilista Kiríllov que o autor referendou sua argúcia.
Se Deus não existe, então eu sou Deus.
A frase, que poderia ter sido retirada de Assim falou Zarathustra, é na verdade extraída de uma das melhores cenas do livro, onde Piotr Stiepánovitch confronta Kiríllov acerca de suas ideias de suicídio. Na cosmovisão do niilista, o suicídio desprovido de motivo seria o ato máximo de livre-arbítrio, e a última fronteira para a deificação do homem. Kiríllov é, na prática, o Übermensch que Nietzsche teorizou.
Sendo assim, por que ler Os demônios? Certamente não para confirmar qualquer viés ideológico que se tenha, mas para prestar um tributo à perspicácia do homem atento aos detalhes, disposto a levar os argumentos contrários às últimas consequências sem transformá-los em caricaturas, e, portanto, livre para exercer sua presciência – não porque busca a glória de ser profeta, mas porque é incapaz de ver seu irmão rumando em direção ao precipício sem alertá-lo.