Por que a Rerum Novarum incomoda até hoje
E como um Papa refutou liberais, libertários e comunistas.
Quando Robert Francis Prevost surgiu na Loggia delle Benedizioni, não mais como cardeal, mas como o recém-empossado Papa Leão XIV, confesso não ter ficado muito impressionado. Como cardeal ele me era desconhecido, e o novo nome adotado não produziu nenhum efeito. Seu discurso – embora belo – foi simples, e além do mais ele era americano (um Papa americano? Feels wrong...). De fato, a única coisa que me animou de verdade foi saber que era agostiniano.
Qual então foi minha surpresa quando, buscando mais informações na internet, vi diversas pessoas animadas com a possibilidade de uma "Rerum Novarum 2.0". Não foi sem constrangimento que me dei conta de que minha indiferença era consequência de uma profunda ignorância, e que o Papa Leão XIII havia sido um prolífico escritor. As suspeitas rapidamente se confirmaram quando o novo Papa confirmou que, sim, havia escolhido o nome Leão muito por conta de Vincenzo Gioacchino Raffaele Luigi Pecci: Leão XIII.
Minha curiosidade pelo novo Papa continuou a aumentar e quando ele mencionou que era hora de tratar dos temas do progresso tecnológico e da Inteligência Artificial com a seriedade com que as questões sociais do final do século XIX foram tratadas na Rerum Novarum, ficou claro que precisava parar tudo e me familiarizar com aquela encíclica o quanto antes.
A Rerum Novarum inicia a Doutrina Social da Igreja, e embora esse nome cause calafrios no leitor incauto, sua proposta é bem diferente do que o homem moderno poderia supor. Escrita em 1891, na aurora dos movimentos socialistas e comunistas, o texto de Leão XIII é um tratado econômico que, como eu iria aprender mais tarde, pode sozinho substituir toda uma bibliografia liberal.
É verdade que essa encíclica é também mal compreendida por muitos. Na verdade, tenho minhas suspeitas se ela é de fato lida por aqueles que a utilizam para defender doutrinas revolucionárias. Isso pois o texto é extremamente claro, isento de ambiguidades, e orientado para a defesa da propriedade privada como direito natural, manutenção do Estado mínimo, e crítica de um capitalismo desprovido de moral.
A defesa da propriedade privada e do Estado mínimo, hoje associada aos libertários, é tão certeira e concisa, que toda literatura libertária ou anarcocapitalista se torna desnecessária. Li alguém no Twitter dizer que Ayn Rand poderia ter escrito parte da Rerum Novarum. Discordo – é preciso um tipo diferente de genialidade para extrair em 29 páginas o que se foi incapaz de dizer em 1200.
Não só calhamaços como A Revolta de Atlas parecem irrelevantes frente à encíclica de Leão XIII, livros mais modernos e aclamados também são superados. Por exemplo, em Democracia, o Deus que falhou, Hans-Hermann Hoppe apresenta um convincente argumento econômico em defesa da propriedade privada e do poder destrutivo dos impostos na sociedade. Mas ele nunca conseguiria resumir de forma tão precisa quanto o antigo Papa:
Mas uma condição indispensável [...] é que a propriedade particular não seja esgotada por um excesso de encargos e de impostos. Não é das leis humanas, mas da natureza, que emana o direito de propriedade individual; a autoridade pública não o pode pois abolir; o que ela pode é regular-lhe o uso e conciliá-lo com o bem comum. É por isso que ela age contra a justiça e contra a humanidade quando, sob o nome de impostos, sobrecarrega desmedidamente os bens dos particulares. – *A economia como meio de conciliação das classes, p. 20.*
Embora Hoppe faça diagnósticos certeiros dos principais problemas da democracia, e ainda que ele reconheça a importância da moral na constituição de uma sociedade, sua fé inabalável numa autorregulação dos povos falha pois perde a dimensão do Pecado Original. Num estilo rousseauniano que não lhe cai bem, tanto Hoppe quanto outros anarcocapitalistas terminam por implicar que o Estado é a causa de toda ruína, algo que a Igreja nunca defendeu.
A dimensão espiritual que falta nesses autores foi melhor captada por Erik Von Kuehnelt-Leddihn, que em Liberdade ou Igualdade dá o passo necessário e reconhece que mesmo a monarquia sendo objetivamente superior à democracia (conclusão que o próprio Hoppe alcança), ela ainda é insuficiente se não for governada por um outro rei – o Rei do Universo – e submetida à outra lei – a Lei Natural.
Visionário como foi, Leão XIII pressentiu de longe os malefícios dos excessos de regulação do Estado, inclusive como a instituição mais sagrada de todas, a família, estava a perigo:
Querer, pois, que o poder civil invada arbitrariamente o santuário da família, é um erro grave e funesto. (...) Assim, substituindo a providência paterna pela providência do Estado, os socialistas vão contra a justiça natural e quebram os laços da família. – *A família e o Estado, p. 6.*
Mas não é só de ataques aos socialistas e à concentração de poder no Estado que o Papa direcionou suas clementes palavras. É justamente ao atacar o liberalismo e o capitalismo amoral que ele se diferencia – e supera – os liberais modernos. Sobre isso também disse Kuehnelt-Leddihn:
O verdadeiro liberalismo não é compatível com o capitalismo sem limites promovido pela Escola de Manchester.
E em palavras duríssimas de ninguém mais ninguém menos que G. K. Chesterton:
It is Capitalism that has forced a moral feud and a commercial competition between the sexes; that has destroyed the influence of the parents in favor of the influence of the employer; that has driven men from their homes to look for jobs; that has forced them to live near their factories or their firms instead of near their families; and, above all, that has encouraged, for commercial reasons, a parade of publicity and garish novelty, which is in its nature the death of all that was called dignity and modesty by our mothers and fathers. – Three Foes of the Family.
E talvez seja por essa dimensão anti-liberal que alguns revolucionários ainda se apeguem à Rerum Novarum, alheios ao fato de que a mensagem final é bem diferente e pode ser resumida na caridade cristã.
Eis, então, a verdade mais inconveniente de todas, que nenhum economista, liberal ou revolucionário conseguirá equacionar se continuar por desprezá-la: nenhum regime político ou econômico será adequado se não se submeter à moral cristã, e no momento que ela passa a ser a bússola de um povo ou governo, os problemas cessam e a lei natural emerge:
Lembrem-se todos de que a primeira coisa a fazer é a restauração dos costumes cristãos, sem os quais os meios mais eficazes sugeridos pela prudência humana serão pouco aptos para produzir salutares resultados. – *Solução definitiva: a caridade, p. 26.*
Por isso a Igreja é tão importante e continua sendo central à História mesmo quando muitos clamam que ela está destruída. Vimos o mundo parar, aguardando ansiosamente o novo Papa. Vimos ateus, protestantes, judeus, revolucionários – ou seja, não-católicos – interessados na eleição de alguém que justifique suas agendas. Em suma, vimos, na última semana, o que Leão XIII havia ensinado há mais de 130 anos: é impossível dissociar a Igreja do mundo.