O sentido espiritual do jejum
Os remédios da Igreja para restabelecer a tríplice harmonia.
Por que jejuar? Aliás, por que fazer qualquer espécie de mortificação? O Evangelho de hoje, da sexta-feira após as cinzas, nos incita a contemplar essa realidade.
O evangelista nos recorda que os discípulos de João Batista, assim como os fariseus, jejuavam, enquanto aqueles que andavam com Jesus, não. Eis a resposta de Jesus: "Por acaso, os amigos do noivo podem estar de luto enquanto o noivo está com eles? Dias virão em que o noivo será tirado do meio deles. Então, sim, eles jejuarão (Mt 9, 15)".
Jesus chama nossa atenção para a finalidade do jejum. Fazemos isso para corrigir desordens internas, introduzidas após a Queda, e que tem como objetivo remediar a nossa relação com Deus.
Ensina-nos a Igreja que o homem, na condição preternatural, estava em tríplice harmonia: entre Deus e a alma, entre a alma e o corpo, e entre o corpo e o mundo. Com o pecado, essa harmonia foi desarranjada, respectivamente, pela soberba da vida, concupiscência da carne, e concupiscência dos olhos. Daí segue-se a necessidade de oração, jejum e caridade para remediar as três desordens.
Quando pensa-se em jejum e se está longe da Igreja, tudo pode parecer muito arbitrário, o que ato contínuo dá lugar ao cinismo. Por que não comer carne sexta-feira? Ah, mas passou de meia-noite já pode? Esse pensamento falha em abarcar o real propósito do jejum – dominar a concupiscência da carne, ou seja, sobrepujar nossa vontade.
O jejum é um exercício espiritual. Quando vamos à academia, treinamos à exaustão, e causamos micro-lesões nos músculos, que ao serem regenerados através do descanso e alimentação adequados, crescem mais fortes. O mecanismo da mortificação é precisamente o mesmo: sofremos, ainda que de forma ínfima, na expectativa de que aquela pequena dor, deixada aos cuidados da Graça, fomente as virtudes.
Nessa época de Quaresma, é propício aumentarmos a carga dos nossos exercícios, por assim dizer. Somos como lutadores em camp para uma luta – embora essa batalha se desenrole no plano espiritual. O adversário passará 40 dias nos tentando e aumentará a intensidade do desconforto à medida que nos aproximamos do dia final, aquele que contemplamos o Cristo crucificado, exaurido de sangue e água, mas vencedor.
E por que fazemos essa preparação todos os anos? Para que emerjamos da Quaresma mais aptos para seguir os ensinamentos de Cristo, com as virtudes fortificadas e a vontade domada, ainda que de forma tímida, porém cientes da nossa total dependência da Graça.
Eis então a razão da resposta de Jesus aos discípulos de João. Jejuamos para nos aproximarmos de Deus, restabelecermos a harmonia que existia antes da Queda. Ora, aqueles homens conviviam com Cristo, bebiam da fonte sagrada e não havia ato melhor que estar em Sua presença.
Nós, no entanto, devemos seguir os passos de Cristo no deserto. Que cada dia vençamos nossa vontade nem que seja um pouco, e assim sigamos a prescrição da Igreja para voltarmos ao estado que Deus no concebeu e viu que era bom.