No dia 17 de Setembro de 2022 eu me casava. Depois de um dia de descanso, na segunda seguinte, dia 19, embarcávamos eu e minha esposa em direção à Itália.
Havíamos planejado muitas coisas para a lua-de-mel: uma semana pela costa Amalfitana (queridinha das mulheres na era pós-Instagram), um fim de semana na paradisíaca Capri (era caro demais ficar mais que isso), dias dirigindo pela costa da Sardinia, a paz de um agriturismo na medieval San Gimignano... mas o coração da viagem, estrategicamente posicionado no centro desse roteiro de quase um mês à velha bota, seriam os dias em Roma.
Ali constituía a parte que mais me empolgava na viagem. Realizaria um sonho de infância, veria com meus próprios olhos as paisagens e construções que popularam meu imaginário por tantos anos. Mas além disso, e principalmente, ali nós tínhamos um compromisso com o papa.
Tudo isso parecia um tanto surreal para mim. Não faziam muitos meses eu hesitava em frente à uma Igreja, como se adivinhasse que cruzar aquela soleira representaria atravessar para uma outra vida.
De fato, parecia uma nova vida quando no dia 5 de Outubro daquele mesmo ano eu me via no espaço reservado aos recém-casados, uma espécie de camarote destacado da multidão que se aglomerava na Praça São Pedro, a poucos metros do papa Francisco, sob uma espécie de arrebatamento.
É bem verdade que as circunstâncias que me levaram a esse estado de desprendimento não foram tão românticas. Fazia muito calor em Roma, não havia uma nuvem no céu. Vindo do Rio de Janeiro, todo calor parece mais insustentável – nunca é tão úmido quanto no Brasil, de modo que o sol se torna sufocante.
Derretendo sob uma roupa social, bati na porta do Vaticano às 9h da manhã, de calça, sapato, e camisa social sem gravata. Já me encaminhava para a praça junto aos outros recém-casados sob os gritos de “auguri!" da multidão que nos cedia passagem, quando fui detido. Num italiano severo e inconfundível, alguém me apontava para o pescoço em tom de repreensão. Não poderia seguir sem gravata.
Bem, espero que tenha ficado claro que nossa temporada na Itália seria longa e portanto deveria levar apenas o essencial. Ademais, era primavera na Europa, e aquele calor de Roma já dava o tom do clima que nos acompanharia. Por fim, e o verdadeiro motivo, eu sou do Rio de Janeiro – não uso terno. Eis então a receita do desastre: não havia trazido uma só gravata comigo.
Vi-me então debaixo do sol escaldante, suando em bicas naquela roupa social, órfão de gravata no meio do Vaticano. Onde conseguiria uma? Deixei minha esposa ali, "guardando lugar", e literalmente corri pelas ruas apertadas do centro histórico de Roma em busca de alguma loja de roupas.
Como mencionei, ainda era cedo. A maior parte das lojas ainda não estavam abertas, e por muito tempo perambulei erraticamente e em vão. Por fim, uma esperança: avistei uma espécie de camelô onde encontrei – adivinhem – uma chinesa. Expliquei a situação o melhor que pude e ela me apontou algumas gravatas de marcas sugestivamente parecidas com grifes europeias. Escolhi qualquer uma, paguei feliz 7 euros (já havia me preparado para pagar muito mais), e quase fiz a pobre mulher desmaiar quando pedi pra ela colocar em mim. Desisti de insistir no favor e voltei em debandada para o Vaticano.
Ali chegando, a segunda parte da tragédia. Precisava colocar a gravata e (espero que tenha ficado claro a essa altura) como sou do Rio nunca tive o hábito de usar e não sabia dar o nó. É curioso como o desespero nos faz abandonar a vergonha; abordei duas desconhecidas na rua, mulheres que na certa dominariam essa arte milenar porém esquecida nos trópicos, implorando pela sua ajuda. Uma após a outra elas se enrolavam, tentavam e não conseguiam. Foi então que um padre jovem que ali passava, acompanhando um outro par de recém-casados, se compadeceu e efetuou o nó providencial.
De fato, nossos destinos não foram unidos em vão. Feliz de ter conquistado meu objetivo e percebendo que o casal estava fadado a se atrasar uma vez que se encaminhavam para a fila – a essa altura gigante – que se formava nos portões da praça, adverti-os franticamente que na condição de recém-casados tinham passagem preferencial. E assim nos dirigimos em direção a onde eu havia sido originalmente barrado; lá encontrei minha impaciente esposa e entramos os quatro, praticamente os últimos, um toque indistinguível e inseparável da cultura carioca.
Eis então porque me sentia em um sonho. Muito já havia acontecido nas primeiras horas daquele dia. E como se não bastasse, o papa estava na minha frente. O papa! Em que momento aquilo tudo tinha acontecido? Coisas estranhas acontecem em nossas vidas...
Enfim, a udienza generalle é, se me permitem a franqueza, bastante maçante. Após dirigir-se ao público, segue-se uma profusão de repetições do mesmo discurso em muitas línguas diferentes, o que só se torna suportável pois ali é a Praça São Pedro, afinal. Findas as intermináveis traduções, o papa, de cadeira de rodas, era empurrado gentilmente para cumprimentar destacamentos especiais que se enfileiravam para conhecê-lo.
Último destacamento, os recém-casados formavam uma fila para receber a sua benção. Ali nos aglomeramos, e muita coisa passou pela minha cabeça. O que falaria? O que pediria para abençoar? Lamentei não ter comigo um terço. Falaria com ele em espanhol? Inglês? Italiano? Na certa ele entenderia português também.
Quando chegou a nossa vez, e como já era de se esperar, toda a preparação foi em vão e não falei nada do que planejara. Éramos uns dos últimos, fazia muito calor... mas vi no rosto daquele senhor idoso, sentado em uma cadeira, um sorriso muito simpático. Parecia genuinamente feliz ao nos cumprimentar. Sob o pretexto de deixar a fila andar me afastei rapidamente para não transparecer que estava tão desconcertado, pois de fato estava.
Ali, às portas da Basílica onde até hoje jazem os restos mortais do primeiro papa, eu encontrava o último. Hoje, 21 de Abril de 2025, Jorge Bergoglio, o papa Francisco, cede seu lugar e torna-se mais um na sucessão apostólica, nesses dois mil anos de doutrina íntegra e consistente chamada catolicismo. Ao papa Francisco, que hoje é acolhido junto ao Pai, peço aquilo que desejei pedir pessoalmente, mas que jamais saiu de minha garganta: que como irmão sul-americano, agora em amizade perpétua com Nossa Senhora Aparecida, interceda dos céus pelo Brasil.