Cada um de nós tem uma ideia, ainda que vaga, de como fazer para aprender um assunto. Uns preferem meditar enquanto escutam aulas ou podcasts; outros mergulham em livros; outros ainda rabiscam anotações em diferentes cores. Muitos, como Feynmann, advogam por preparar aulas e seminários e tentar explicar o assunto nos termos mais simples possíveis.
Seja como for, é inevitável que o processo educativo requeira o aprendiz de tomar parte ativa no estudo. "Abandonado a uma espécie de indolência, seu espírito assiste ao desfile das ideias e permanece inerte", diz o Pe. Sertillanges. Essa é uma das razões pelo qual o método do Zettelkasten é tão difundido por aqueles que levam seus estudos a sério.
Formalizado pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann, Zettelkasten significa literalmente "caixa de anotações", ou "caixa de fichas" (em inglês, slip-box). Esse método foi popularizado no livro How to Take Smart Notes, onde o autor Sönke Ahrens descreve o método de Luhmann, reconhecendo no entanto que outros pensadores (como o já mencionado Pe. Antonin Sertillanges) já haviam concebido sistemas semelhantes. O método consiste em desenvolver um thinking system onde pensamentos e ideias são extraídas com as próprias palavras em forma de notas (permanent notes), e conectadas a outras, formando um cluster de ideias que evoluem com o tempo.
Originalmente, esses pensamentos eram extraídos majoritariamente de livros, e daí criavam-se as literature notes, que nada mais eram do que referências aos trechos originais que haviam servido de inspiração. Outros tipos de notas notáveis são as fleeting notes (onde rascunha-se as ideias que serão depois meditadas de modo a não se esquecer o que quer que tenha chamado atenção) e as outline notes (ou índices, onde agrupa-se notas semelhantes, tornando-se obras embrionárias).
Criticamente, cada nota era indexada e conectada, de modo que fosse possível rastrear as ideias e pensamentos que fundamentam uma determinada conclusão. Cabe dizer que esse é o método proposto por São Tomás de Aquino para recordar-se de um fato: "ordene o que se quer reter, aplique-lhe profundamente o espírito, medite sobre frequentemente. Quando se quiser recordá-lo, tome a cadeia das dependências pela extremidade, o que lhe trará todo o resto."
Modernamente, softwares como Obsidian facilitam a criação de backlinks, ou seja, referências a outras notas. Esse processo é crucial para que se navegue pelas ideias, relembrando, modificando e dialogando com seu eu do passado, um refinamento sem-fim dos próprios pensamentos. Uma consequência fantástica desse processo é possibilitar “descobertas casuais”, o que em inglês chamamos de serendipity; aquele desenrolar do novelo que nos leva a pensamentos originais, associações que nunca havíamos feito, aquele sentimento de click quando as ideias se encaixam.
Tudo isso é muito belo e empolgante, mas dependente de um princípio básico que pode ter passado despercebido: as notas devem ser escritas do próprio punho, num esforço muitas vezes hercúleo de transportar as ideias da mente para o papel. Eis porque o estudo é uma tarefa ativa. É necessário dialogar com suas fontes, extrair delas aquilo que lhe é original, analisá-la sob seu próprio olhar, que – assim como você – é único.
Esse sem dúvida é o principal problema da informação na era moderna, onde a abundância de opiniões permite que qualquer um sirva-se daquelas que lhe sejam mais convenientes como se escolhessem produtos numa prateleira. Evidentemente esse processo é potencializado pela inteligência artificial, que produz tantas opiniões quanto somos capazes de perguntar, e ironicamente substitui a única coisa que não deveria: a inteligência natural.
Montaigne, em um brilhante ensaio chamado Do pedantismo, já denunciava a falta de entendimento e originalidade dos intelectuais ainda no século XVI:
E o que é pior, os estudantes, e aqueles a quem por sua vez ensinarão, recebem dos mestres, sem assimilar melhor, uma ciência que passa assim de mão em mão, como pretexto a exibição, assunto de conversa, usada tal qual a moeda que por ter sido recolhida serve apenas de ficha para calcular.
Em seguida lamentava-se:
Sabem dizer "como observa Cícero", "eis o que fazia Platão", "são palavras de Aristóteles", mas que dizemos nós próprios? Que pensamos? Que fazemos? Um papagaio poderia substituir-nos.
Se Montaigne decepcionava-se com os pedantes que citavam os grandes autores clássicos sem profundidade, o que pensaria de hoje até mesmo nossa elite intelectual tê-los esquecidos? Se achava que naquela época um papagaio nos substituiria (grifo meu), que desgosto não lhe causaria aqueles que regurgitam o que a IA da moda sopra-lhes no ouvido?
No ensaio seguinte, Da educação das crianças, Montaigne implora para que devolvamos às crianças sua liberdade de pensar, que "não lhe peça contas apenas das palavras da lição, mas também do seu sentido e substância". Numa era onde qualquer um é capaz de gerar qualquer resposta que soe minimamente crível em poucos segundos, é preponderante que atendamos às súplicas do ensaísta.
A IA é, nesse sentido, o anti-Zettelkasten. Ali, nenhuma ideia é nossa, e tudo é repetido como papagaios. Nada é apreendido, nada é retido. Podemos satisfazer nosso desejo de resposta, mas nunca estaremos alimentados. "É indício de azia e indigestão vomitar a carne tal qual foi engolida", diz Montaigne. "O estômago não faz seu trabalho enquanto não mudam o aspecto e a forma daquilo que se lhe deu a digerir".
Lembro-me de um dia onde estudando sobre a corrente filosófica do existencialismo, pesquisei no ChatGPT e me dei tão por satisfeito com a resposta que a copiei e colei o resultado no meu próprio Zettelkasten. Ora, nunca fui capaz de relembrar uma só palavra! Aquela nota era um alien junto às outras, não pertencia ali. Não tinha minhas digitais, e portanto não era minha. Era um alimento mal digerido.
O remédio para a superficialidade moderna amplificada pela inteligência artificial é um Zettelkasten pessoal, adaptado da melhor forma para você, mas sem abrir mão da regra de ouro: minhas notas, meus pensamentos. É comum na internet ver discussões intermináveis de como organizar esse sistema. Minha recomendação é ignorar essa questão por completo até que o hábito da escrita e tomada de notas tenha se solidificado. Mais importante do que como fazer, é começar a fazer: escrever é pensar, e criatividade é conectar ideias. Quanto antes se começar a formar esse hábito, melhor.
Por fim, todo esse esforço seria em vão se não orientado para o que é correto. Não se estuda para parecer intelectual, ou aprender Platão ou Aristóteles. "A verdade e a razão são comuns a todos e não pertencem mais a quem as diz primeiro do que ao que as diz depois", diz Montaigne. Estudar é tomar parte na Verdade, juntar-se ao seleto grupo daqueles que se esforçaram genuinamente para entender um pouco mais do que lhes rodeia. Sim, juntar-se. "Não é mais segundo Platão, do que segundo eu mesmo, que tal coisa se enuncia, desde que a compreendamos e a vejamos da mesma maneira".