Depois de finalizar Os monstros de Hitler, buscava uma leitura mais palatável para as pequenas férias que se aproximavam. Sob certos aspectos, a literatura é como a gastronomia: depois de uma refeição pesada, cuja digestão é difícil, ainda que saborosa, cai bem algo mais leve.
Foi então que arrumando as malas incluí um pequeno livro de bolso encontrado por acaso na famosa (pelo menos nas redondezas) livraria Miragem, em São Francisco de Paula, destino comum para os locais na Serra Gaúcha: O coronel Charbet, seguido de A mulher abandonada, duas novellas escritas por Honoré de Balzac.
A leitura de fato cumpriu o esperado: leve e divertida, em duas noites li os dois contos. E embora a princípio não tencionasse escrever sobre eles, reconsiderei após reler alguns trechos e escrever minhas próprias observações.
”Eu aprendi mais em Balzac sobre a sociedade francesa do que em todos os livros dos historiadores e economistas da época”, é uma frase de Friedrich Engels que estampa a capa do livro. Balzac representa o poder da literatura, e o filósofo alemão reconheceu isso no escritor francês. Com sua argúcia, é impossível não perceber as incoerências, as hipocrisias, e as virtudes daquela sociedade emergente e alterada para sempre no pós-Revolução Francesa, e que teriam reflexos profundíssimos em todo o mundo ocidental dali em diante.
Nesses dois contos, Balzac retrata de formas diferentes, sob personagens diferentes mas reais enquanto arquétipos da sociedade francesa, a virtude da honra e o vício da ganância. Esse tema é bem recorrente em sua Comédia Humana, sendo muito bem explorado em O Pai Goriot, cujas duas novellas referenciam de passagem. A ascensão social era um assunto que interessava muito o escritor, ele mesmo vítima daquele teatro de aparências.
Para ilustrar a visão de Balzac, preciso resumir as duas histórias, o que significa incluir seus desfechos, que por serem inesperados não deveriam ser arruinados despretensiosamente. Feito o aviso, sigamos.
Em O coronel Charbet, o velho coronel é dado como morto após uma famosa batalha na época de Napoleão. Encerrado em uma cova coletiva, o valente soldado arruma uma forma de se escapar, mas as feridas e a doença impedem-lhe de ser resgatado. Quando enfim recupera-se, sua fama como morto já havia se alastrado, e as honrarias recebidas tornavam ridículas suas pretensões de reivindicar sua própria vida.
Acontece que sua mulher legítima terminou por arrumar um novo casamento, apoderando-se da fortuna do coronel. O novo arranjo foi-lhe extremamente favorável, de modo que não estava em seu interesse reconhecer o retorno do morto.
Charbet vagou como um fantasma por anos, mendigando enquanto sua esposa regateava-se com seu dinheiro e fama. Eventualmente o coronel encontra o jovem advogado Derville que, compadecido, decide ajudá-lo. Quando o escândalo parecia inevitável, a agora condessa Ferraud, como a serpente no Paraíso, aproxima-se amorosamente do velho soldado, manipulando-o ao oferecer um “amor de pai” no lugar de um agora impossível “amor de esposa”.
Prestes a ceder todos os seus direitos pelo bem da ex-mulher, o coronel finalmente descobre que o suposto amor não passava de manipulação para calá-lo, e tomado pelo mais profundo desprezo, desiste da vingança, como que enojado o bastante para até mesmo lutar. No fim, o honroso Charbet termina seus dias em um asilo, mendigando tabaco a estranhos enquanto a sociedade prestava homenagens à sua memória.
Já em A mulher abandonada, o jovem Gaston du Nueil apaixona-se pela condessa de Beauseánt, auto-exilada da sociedade após um divórcio. Impelido pelo ímpeto da juventude, o nobre Gaston oferece sua companhia no exílio, e apesar das resistências iniciais da bela condessa, vive um romance dos sonhos por quase uma década numa propriedade à beira de um lago na Suíça.
Mas não seria Balzac se a história assim terminasse. A perspicaz condessa, consciente de sua posição e vacinada contra as regras implícitas daquela sociedade impiedosa, percebe que aquela união ilegítima se tornaria um fardo para o amado mais cedo ou mais tarde. Convencido pela mãe, que jamais aprovara a união, e balançado pela chegada de uma jovem compatível com sua posição e que permitiria que ele assumisse seu papel de direito na sociedade, Gaston abandona a condessa divorciada, cumprindo a profecia que ela fizera anos antes.
Decidida a não cometer o mesmo erro duas vezes, a sra. de Beauseánt não aceita as tentativas de reaproximação do ex-amante, que não tarda a se arrepender da decisão tomada. Ciente de que trocara um amor verdadeiro pela sociedade, e que o amor perdido jamais seria recuperado, o barão Gaston du Nueil se mata.
Muitos aspectos unem as duas histórias. Se no primeiro conto o coronel Charbet busca reintegrar-se à sociedade, na segunda história a condessa aceita sua posição e resigna-se fora dela. Alguém poderia ser tentado a encontrar na história da sra. de Beauseánt uma crítica ao divórcio e às regras da época, mas isso seria raso. A condessa demonstra uma extrema força de espírito, e aceita sua penitência: ”Violei as leis da sociedade, a sociedade me puniu. Fomos justas uma com a outra”.
Já o coronel, que demonstra durante toda a história ser uma pessoa virtuosa, a ponto de dar o dinheiro que recebera do advogado para um amigo que acolhera-lhe, após a desilusão final, quando já havia se resignado a viver como uma sombra de si mesmo, também opta pelo autoexílio, não mais desejoso de compartilhar sua vida com homens e mulheres tão desprezíveis. Até mesmo o velho sonho de alistar-se como soldado, onde poderia ser recompensado por sua honra, parecia-lhe inútil: “Quando penso que Napoleão está em Santa Helena, tudo neste mundo me é indiferente. Não posso mais ser soldado”. O coronel perde seu propósito, e com isso a vontade de pertencer à sociedade.
A serpente também se faz presente nas duas histórias: primeiro como a antiga e legítima esposa do coronel Charbet, e depois como a mãe do barão du Neil. Balzac sabia que numa sociedade controlada pelas aparências, pela política e pela manipulação, muitas mulheres dispunham de terreno fértil para mostrar o que tinham de pior. Apesar disso, seria errado acusá-lo de vilanizar suas personagens femininas: a condessa de Beauseánt tenta proteger o jovem barão de uma vida marginalizada desde o início, e se rejeita vê-lo após a separação, é menos por ressentimento do que por piedade.
Balzac nos leva ao extremo da honra, quando ela sobrepuja as aparências e portanto revela-se como virtude. Sendo homem, mais vale mendigar do que abrir mão dela. Sendo mulher, deve ser possível abrir mão de um romance de conto de fadas para não perdê-la.
Engels disse que Balzac nos ensina o funcionamento da sociedade francesa, mas essa é uma visão materialista que, ainda que conveniente ao mecenas de Marx, não faz justiça ao gênio do escritor. Ao observar aquela sociedade e suas idiossincrasias, Balzac revelava-nos muito mais do que a sociedade francesa da Restauração; ele revelava-nos um pouco mais de nossa própria alma.