O primeiro domingo da Quaresma é reservado à meditação das tentações de Cristo. Presente em três Evangelhos sinóticos, ouvimos com certa surpresa a história daquele que é perfeitamente homem e perfeitamente Deus ser tentando pelo diabo.
Em primeiro lugar, a reflexão óbvia: se até Cristo jejuou e fez penitência, o que dirá de nós? Sem dúvidas o exemplo aqui é muito forte – constrangedoramente forte. É evidente que devemos respeitar a proporcionalidade das coisas, portanto nossa penitência na época quaresmal é uma tímida fração do que Ele passou.
Depois, percebendo que Cristo citava-lhe as Escrituras a cada tentação, o astuto diabo valeu-se da mesma retórica:
Levou-o também a Jerusalém, e pô-lo sobre o pináculo do templo, e disse-lhe: Se tu és o Filho de Deus, lança-te daqui abaixo; Porque está escrito: Mandará aos seus anjos, acerca de ti, que te guardem, E que te sustenham nas mãos, para que nunca tropeces com o teu pé em alguma pedra. E Jesus, respondendo, disse-lhe: Dito está: Não tentarás ao Senhor teu Deus. – Lc 4, 9-12
Quais consequências tiramos dessa interação? Em primeiro lugar, é claro e lícito o uso das Escrituras para rebater as investidas do demônio, além de sua óbvia qualidade apostólica. Assim, não se enganam aqueles que valorizam a Bíblia, visto que o próprio Cristo valeu-se dela para resistir às tentações.
No entanto, o diabo maliciosamente usa as Escrituras contra Jesus. Ou seja, as palavras que estão ali escritas de nada valem sem a devida interpretação. Mas Cristo, em sua autoridade, é capaz de notar a desfaçatez e combatê-la de forma didática, munindo-se novamente do texto sagrado mas dessa vez expondo o seu real significado, aquele que a Igreja sempre acreditou ter sido inspirado pelo Espírito Santo.
Todos nós já passamos por isso, especialmente nos dias modernos cuja morte de Deus foi anunciada. Quantas vezes já não ouvimos com malícia: "Ora, mas não diz isso na Bíblia? Mas Jesus não fez aquilo?" Distorções da palavra de Deus são tão antigas quanto as tentações no deserto, e aqui fica evidente a necessidade da autoridade central da Igreja de, na qualidade de guardiã da Palavra, buscar com humildade e reta intenção o sentido daquilo que Deus quis deixar para nós.
O relato dos evangelistas sobre as palavras de Cristo é um golpe fatal na doutrina da Sola Scriptura. Citar a Bíblia é fácil, até o diabo sabe fazê-lo. Mas entender o que quis ser dito é um trabalho muito mais complexo, de sorte que a Igreja sempre soube ser difícil para um homem, em sua iniquidade, desvendá-lo por si. Não à toa cristãos do mundo inteiro, por dois mil anos, unem-se para, juntos e guiados por Deus, extrair aquilo que é a Palavra, visto que ela não é vã e contém as chaves de nossa salvação.
Por isso, cuidado com a tentação das Escrituras. Lembremos do diabo que usou-as em benefício próprio, e portanto, contrário a Deus. Devemos meditar sobre as palavras que ali estão justamente, mas não recusemos o auxílio daqueles que se esforçaram para compreender seu real significado, cientes de que foram guiados pela autoridade do Pai que está no Céu.