Hoje meditamos as palavras de Cristo em Mateus 6, 7-15 acerca da oração, onde Nosso Senhor ensina-nos um aspecto crucial da fé católica.
"Quando orardes, não useis muitas palavras, como fazem os pagãos", diz Jesus, "vosso Pai sabe do que precisais, muito antes que vós o peçais". E então enuncia o famoso Pai Nosso.
É importante entender a dualidade do trecho: "vosso Pai sabe do que precisais". Aqui, Cristo não justifica os cínicos que afirmam – imbuídos de falsa inocência – que já que Deus é onisciente, é vã qualquer tentativa de pedir-lhe algo. Mais do que isso, Ele deixa claro que é o Pai que sabe do que precisamos, não nós. Com efeito, tão logo inicia-se o Pai Nosso entoamos: "seja feita a tua vontade".
Essa inversão proposta por Cristo, onde rezamos não pelo que queremos obter, mas para que se cumpra a providência divina, é fundamental e basilar do cristianismo. Nesse pedido, subentende-se a misericórdia e benevolência de Deus, algo que era estranho aos pagãos.
Por mais secularizado que sejam os dias atuais, ainda vivemos sob a herança dos ensinamentos de Cristo, e portanto pode-se passar desapercebido quão disruptiva era essa forma de se relacionar com as divindades sob o ponto de vista pagão.
Se voltarmos aos tempos de Homero, tanto a Ilíada quanto a Odisseia estão repletas de passagens onde os personagens oferecem holocaustos (sacrifícios) aos seus deuses na expectativa de obter favores.
Na Ilíada, Ulisses, após devolver Criseida ao pai – um sacerdote de Apolo – oferece sacrifícios para acalmar a ira do deus, que havia enviado uma praga aos aqueus. Aquiles sacrifica 12 troianos, junto a diversos animais, no funeral de Pátroclo, em sua honra. Na Odisséia, os feácios precisam realizar sacrifícios a Poseidon, que irado por tê-los eles enviado Ulisses de volta a sua terra, transforma seus navios em pedra e afunda-os.
A lista de intervenções divinas nas obras gregas, muitas por mero capricho, é longa demais para caber aqui. Porém o objetivo é mostrar que aquelas sociedades onde Jesus pregava viviam com esses exemplos em seus imaginários.
Como são descabidos aqueles que afirmam que o cristianismo é paganizado! Como duas doutrinas tão diametralmente opostas poderiam ser a mesma coisa? As diferenças são irreconciliáveis – Cristo propõe uma quebra de paradigma, uma inversão no relacionamento dos homens com o transcendente. E se existe uma benevolência para com os pagãos, nada mais é do que o fruto da caridade em obediência à exortação: fazei discípulos de todas as nações (Mt 28, 19).
A verdade é que os detratores do cristianismo, aqueles que veem todas as religiões como uma só, como se tudo que as diferenciasse fosse apenas cosmético, falham, seja por ingenuidade ou malícia, a fazer como René Girard, que corajosamente afirmou que só chegamos ao real significado das coisas quando examinamos suas diferenças no contexto de suas similaridades. Ou como disse Chesterton: "as religiões terrestres não diferem grandemente em ritos e formas; mas diferem grandemente no que ensinam."
Sim, os cristãos rezam como os pagãos. Também, oferecemos sacrifícios como eles (embora incruento e redimido pelo supremo sacrifício da Cruz). Dizer que daí segue-se que "é tudo a mesma coisa" é como dizer que todos os homens são iguais uma vez que comem e bebem. Ao longo de toda sua vida pública, Jesus ressignifica os atos de devoção tanto de gentios quanto dos judeus.
Está na estrutura da realidade honrar aqueles a quem devemos nossa vida. Por isso, é normal que na história dos homens, cada povo tenha tido uma forma de lidar com o transcendente, a que damos o nome de religião. A necessidade de alimento espiritual é tão real quanto a de alimento material. Por isso, não deveria ser escândalo a benevolência de Cristo àqueles que viviam na escuridão, para que confiassem na Justiça divina e dela obtivesse o pão de cada dia.