Quando terminei a leitura da Ilíada deliberei por um momento se deveria logo engatar na sua "sequência" – a Odisseia. Embora tivesse gostado da leitura da história de Aquiles e Heitor, bem como dos guerreiros aqueus e troianos, confesso ter achado a trama pouco inspiradora e dominada em excesso pela teimosia de Aquiles, por batalhas intermináveis, e por congeminações de deuses que de certa forma pareciam tirar o protagonismo dos guerreiros.
Foi com certa dúvida então que optei por ler ato contínuo a Odisseia, esperançoso que o desfecho final da guerra – incluindo o famoso cavalo de madeira – estivesse ali bem retratado. Nesse aspecto me enganei (não há muitos detalhes apresentados na narrativa de Ulisses), mas não poderia ter acertado mais em ler sobre as aventuras do herói.
A Odisseia é, em muitos aspectos, excepcionalmente mais rica que a Ilíada. Seja em termos da mitologia apresentada, dos personagens e arquétipos, ali nos vemos torcendo pelo personagem principal, por mais dissimulador que fosse, por inegavelmente nos compadecermos de suas intenções.
A propósito – e não quero aqui fazer um mero contraste com a Ilíada – são muitos os personagens da história que são admiráveis, algo que não ocorre na trama anterior (do desvario de Aquiles às picuinhas dos deuses, passando pela flagrante imprudência de Helena e Páris). Na Odisseia, torcemos por Ulisses e compartilhamos sua vingança, nos compadecemos de Telêmaco, entendemos Penélope, louvamos Eumeu, respeitamos Menelau, e por aí vai.
Ulisses, em muitos sentidos, representa o ideal de determinação, superado apenas pela sua astúcia literalmente sobre-humana, já que muitos de seus estratagemas são obras de Atena. Aliás, a ingerência dos deuses na história é muito mais sutil, e pouco vemos sobre eles que não seja absolutamente relevante para a história – como a interseção da deusa de olhos esverdeados junto a Zeus pelo retorno de Ulisses, e a maldição do Ciclope acatada por Posêidon.
Se na Ilíada os valores ali representados se diluem na batalha sangrenta e no luto desesperado de Aquiles, na Odisseia testemunhamos Ulisses lutando contra as seduções da carne: seja libertando-se de Circe, passando incólume (embora não surdo) pelo canto das sereias, e implorando a libertação da ninfa Calipso, onde era tratado como deus.
O relacionamento de Ulisses com Calipso inclusive é o mais intenso dos seus desafios. A ninfa não devora seus companheiros nem transforma-o em porco, mas oferece-o um "feitiço" muito mais poderoso: o comodismo. Na ilha de Ogígia, onde viveu com a ninfa por 7 anos, Ulisses banqueteava-se, deitava-se em amor diariamente com uma bela mulher, e morava numa gruta que encantava até mesmo os deuses (Hermes surpreende-se com sua beleza quando lá é enviado com a ordem para a libertação de Ulisses). Embora tivesse tudo isso, Ulisses era triste e desejava mesmo retornar para casa, para sua mulher e filho.
Há muito a ser dito sobre a Odisseia, mas melhor mesmo é lê-la e relê-la. Impossível não ver referências ao poema de Homero em histórias mais modernas. Em particular, a trajetória de Ulisses, saindo para batalhar contra a vontade, retornando após passar por imensos desafios e vendo o que nenhum homem jamais vira, para depois ter que expurgar os parasitas que infestavam sua casa, dá o tom do épico que Tolkien escreveria magistralmente milhares de anos depois.
Prouvera mais histórias bebessem da fonte inesgotável de beleza, magia e virtude que a Odisseia oferece. A nós, resta-nos a inspiração de que, como Ulisses, é justo e digno voltar para casa e reclamar o que nos é de direito, desde que regressemos com a honra de quem nunca fugiu de seu dever.