Uma das maiores tragédias brasileiras é a corrupção do imaginário popular. Embora esse termo tenha flertado com a vulgarização nos últimos anos – especialmente em núcleos direitistas e conservadores – isso não o torna menos importante ou urgente de ser corrigido.
O imaginário de uma pessoa (e por extensão, de um povo), é o conjunto de símbolos, muitas vezes representado na forma de histórias e mitos, que dá sentido aos referentes observados na realidade. Por exemplo, é difícil entender o que é coragem se não for através de histórias – reais ou fictícias. Note que o imaginário não precisa necessariamente ser populado de fantasia ou fatos "heróicos"; é muito mais fácil entender a castidade quando se conhece sacerdotes, está familiarizado com a vida dos santos, ou imerso na Idade Média. Consequentemente, quanto mais afundado em promiscuidade e vulgaridade, mais difícil se torna acreditar que ser casto é até possível.
Essa é uma das razões pela qual precisamos de alta literatura, que floresce no terreno fértil da literatura clássica. Quando lemos O Senhor dos Anéis, imaginamo-nos sábios como Gandalf, valentes como Gimli ou leais como Sam. Descobrimos que tais atos são possíveis, e recebemos um blueprint para adotá-los – proporcional à argúcia do autor em capturar os símbolos que representam esses atos. Por isso os melhores romances são aqueles que lidam com as contradições inerentes do homem, pois ali nos sentimos representados, percebemos a verdade daqueles sentimentos, e nos conectamos com a história e os personagens.

A literatura nos permite observar o mundo sob diferentes lentes. Diz C. S. Lewis:
Ao ler as grandes obras da literatura, transformo-me em milhares de homens sem deixar, ao mesmo tempo, de permanecer eu mesmo. Como o céu noturno da poesia grega: vejo-o com uma miríade de olhos, mas sou sempre eu a ver. Neste ponto, como na religião, no amor, na ação moral e no conhecimento, ultrapasso-me a mim próprio e, no entanto, quando o faço, sou mais eu do que nunca.
Assim, quando lemos os dramas psicológicos de Raskolnikov em Crime e Castigo, somos transportados para aquela realidade, convivemos com o sofrimento daquele homem atormentado pelo crime horrendo que cometeu, participamos e até torcemos pelo seu arrependimento e redenção. Não precisamos assassinar ninguém a machadadas, mas graças a Dostoiévski temos calafrios ao percebermos que podíamos ser nós os personagens do romance.
Eis porque Chesterton (e agora completo as menções ao trio Chesterton, Lewis e Tolkien, como todo bom ensaio sobre o imaginário) apreciava tanto os contos de fada: não só por apresentar o dragão, mas por mostrá-las desde cedo que eles podem ser vencidos . Essa é a história da Cruz – a vitória suprema e a legitimação da redenção.
Iniciei esse texto falando sobre o Brasil pois observo aqui uma pobreza singular de símbolos virtuosos. Desencorajado por décadas – e até séculos – de corrupção cultural, o brasileiro perdeu a sensibilidade para o bom, mergulhando no mais profundo niilismo. Assim, nenhum empresário pode prosperar sem ser explorador, nenhum político pode propor algo sem roubar, ninguém é capaz de um ato caridoso sem ganhar algo em troca, e por aí vai. O resultado é um país de desconfiados, onde impera a lei do "farinha pouca meu pirão primeiro", um caos para qualquer sociedade que tenha a mínima pretensão de ser saudável.
Ler grandes textos e familiarizar-se com grandes homens, ainda que do passado, nos resgatam desse niilismo cultural. Mas isso não é desculpa para fugir do mundo. Montaigne, "long weary of the servitude of the court and public employments", retirou-se da vida pública antes de completar 40 anos, mas nunca deixou de comentar e influenciar a sociedade de seu tempo.
No entanto, um alerta: de nada adianta construir um imaginário e preenchê-lo com símbolos e ideias ruins. Em Os monstros de Hitler, fica claro que o nazismo só floresceu devido a um fértil solo sobrenatural que permeava a sociedade alemã desde o fin de siècle. Convencidos da superioridade indo-ariana, e "libertos" da "tirania cristã", a sociedade alemã fragilizada pela guerra, fome e pobreza, buscou no esoterismo, na parapsicologia e em diversas doutrinas gnósticas um resgate de sua autoestima. Não estivessem esses elementos presentes no imaginário sobrenatural daquele povo, as bizarras doutrinas nazistas dificilmente teriam encontrado tantos adeptos.
Eis então nossa tarefa: construir um imaginário que nos permita desafiar os dragões do dia a dia, buscando exemplos que nos motivem a seguir marchando em frente. Isso não significa infantilismo ou uma noção exageradamente otimista da vida e desconectada da realidade: não há nenhum glamour no sofrimento de Raskolnikov, e Frodo hesita em destruir o anel já nas Fendas da Perdição. Embora haja redenção em ambas histórias, elas só são possíveis por serem precedidas das virtudes necessárias – virtudes que os alemães se afastaram quando optaram pelo caminho do racialismo, eugenismo e sobrenaturalismo.
Enriqueçamos, pois, nossa realidade com o que aprendemos com a literatura, que nas palavras de Proust, "é como um laboratório fotográfico, no qual as imagens da vida podem ser processadas de modo a revelarem os seus contornos e nuances. Eis a “utilidade” da literatura: “desenvolver” as imagens da vida."
Baita texto, mais uma vez, e baita dica. Não sabia do lançamento de Os monstros de Hitler, já estou adquirindo meu exemplar, valeu Rafael!