Quando iniciei a leitura de I See Satan Fall Like Lightning, de René Girard, acreditava saber onde estava me metendo. Havia ouvido falar da sua teoria do desejo mimético, mas confesso que em um contexto diferente do que o autor apresenta no livro.
A obra de Girard é um daqueles raros exemplos de textos densos porém simples, uma vez que o autor não faz a mínima menção de complicar seu pensamento – pelo contrário, o francês martela diversos termos e conceitos oriundos de sua filosofia ao longo do livro. Ainda que se valha de uma retórica direta, Girard condensa ideias que a primeira vista nos parecem exóticas, mas que ao final do livro soam como originais e – por que não? – acertadas.
Dada a densidade do texto, seria contraproducente tentar resumi-lo aqui. Farei, portanto, uma síntese das minhas impressões gerais, ainda que esse seja sem dúvida um daqueles livros que deve-se revisitar, pois nos oferece uma chave de leitura capaz de mudar nossa percepção sobre diversos assuntos.
De forma extremamente simplificada, Girard propõe que o desejo mimético é a base das rivalidades humanas. Ou seja, quando uma pessoa torna-se um modelo para outra, ela passa a desejar aquilo que seu modelo tem, seja isso bom ou ruim. No mundo moderno, isso é comumente associado a desejar o emprego do outro, sua mulher, sua riqueza, fama, etc, mas a rivalidade vai além do puro materialismo: por exemplo, Caim deseja o prestígio que Abel goza.
À medida que a rivalidade mimética se estabelece, uma sucessão de escândalos vai aumentando sua intensidade. Aqui é importante estabelecer que Girard vai além do significado corriqueiro de escândalo, retornando a sua base original: o grego skandalon (σκανδαλον), que significa literalmente "pedra de tropeço", e é um termo muito utilizado na Bíblia, inclusive por Cristo.
Ou seja, uma pessoa "escandalizada" vai além do sentido moderno de "ofendida", mas em sua raiz significa alguém que "tropeçou", se afastou, do seu caminho. Quando dizemos que um padre não deve escandalizar seus fiéis, não é porque não queremos ofendê-los; mas sim que não se deve afastá-los da virtude.
Quando Cristo manifesta sua intenção de ir a Jerusalém sofrer sua Paixão, Pedro tenta demovê-lo da ideia. A resposta de Cristo é dura:
Retira-me de mim, Satanás! Tu serves-me de escândalo, porque não tens a sabedoria das coisas de Deus, mas dos homens. – Mateus 16:23
Jesus faz uma clara alusão ao sentido original da palavra e, sabendo o mecanismo estava em movimento, corta-o severamente. Veremos mais sobre isso em seguida.
Girard argumenta, portanto, que os escândalos são o mecanismo que intensificam a rivalidade mimética, num processo de bola de neve que culmina num sentimento de todos contra um, ou seja, a sociedade elege um bode expiatório onde todos os seus "pecados" poderão ser expiados. A esse processo Girard chama single victim mechanism.
Uma vez que a vítima foi eleita, ela é então expelida da sociedade – o que nas religiões e mitos primitivos significava muitas vezes seu assassinato (embora pudesse ser o exílio, como vemos no mito de Édipo). A remoção daquele indivíduo causa uma diminuição nas tensões sociais, uma paz passageira, e justamente por conta dessa paz que uma transformação ocorre: a vítima é deificada e esse processo se torna um ritual.
É impossível nesse momento não fazer paralelos com a Paixão de Cristo, e Girard dedica bastante tempo nisso. Ora, Cristo, assim como Édipo e diversos outros personagens da história, sofrem a violência das massas. Cristo, como os mitos gregos, é "divinizado". Seria então o Cristianismo culpado de uma de suas acusações mais comuns: a de ser nada mais nada menos que uma cópia pagã?
Girard nega veementemente que essa semelhança signifique igualdade:
To arrive at the true meaning, we must focus on the difference in the context of all the similarities.
O bom e velho Chesterton já havia dito, em Ortodoxia, que as religiões são similares em tudo, menos no que importa:
As religiões terrestres não diferem grandemente em ritos e formas; mas diferem grandemente no que ensinam.
É como dizer dizer que se dois jornais, um de esquerda e outro de direita, tem o mesmo formato e aparência, eles devem passar a mesma mensagem, quando o que realmente os diferencia está no conteúdo.
A "Vitória da Cruz" é justamente o fato de que, quando Édipo é expulso de Tebas pelo single victim mechanism que elege-o como causador dos males (na história Tebas está sofrendo de uma peste), aquele povo vê-se como correto, e a peste de fato desaparece. Ou seja, há uma legitimação do contágio mimético e de sua consequência fatal.
Cristo, por outro lado, subverte a lógica. Ele retorna justamente para dizer que é o Cordeiro Imolado sem pecado algum, e portanto aquele ciclo de violência que condenou-lhe precisa parar. A Paixão é a antítese do contágio mimético pois desvela o erro que é o single victim mechanism.
Munidos dessa chave de leitura diversas passagens dos Evangelhos revelam seu verdadeiro significado. No famoso caso do (quase) apedrejamento da mulher adúltera, Jesus impede o contágio mimético. É justamente a primeira pedra que causa todas as outras.
Girard contrasta esse fato com uma das comparações mais impressionantes do livro, quando Apolônio de Tiana, um guru contemporâneo de Jesus, realiza um milagre ao expurgar a "peste" (assim como em Édipo, peste não necessariamente significa uma doença, mas de forma lato sensu uma tribulação passada pela sociedade) de uma cidade ao depositar seus pecados em um mendigo cego. Após serem instruídos por Apolônio a apedrejarem o inocente, os homens hesitam. O guru, portanto, instiga-os a lançarem a primeira pedra, e o apedrejamento se segue de forma tão violenta que o mendigo é transformado em massa.
Apolônio é, portanto, um epítome da violência mimética que converge os problemas da sociedade em uma vítima inocente, restabelecendo uma ordem temporária após o sacrifício. Nas palavras de Girard, esse contágio mimético é Satanás.
Essa concepção de Satanás como algo desprovido de forma corrobora a visão escolástica de que o Mal não existe ontologicamente – ele é apenas uma ausência do Bem. Isso também contraria a visão tipicamente gnóstica de que existe um "deus bom" e um "deus mau" (Demiurgo): Satanás não é uma espécie de "deus do mau", mas sim um processo de contágio mimético que culmina numa single victim, que é expelida pelo próprio sistema de modo que o ciclo de violência possa recomeçar ad eternum. Cristo, o Cordeiro de Deus, faz-se homem para revelar-nos esse mecanismo.
Existe muito mais a ser dito sobre Girard e espero voltar a esse tema diversas vezes nesse espaço. Certo ou não, exagerado ou não, o fato é que Girard oferece uma forma antropológica de se interpretar os mitos e os Evangelhos. De fato, ele afirma que os Evangelhos oferecem uma "teoria dos homens" (antropologia) em vez de uma "teoria de Deus" (teologia).
É justamente ao se analisar as semelhanças entre as religiões, os mitos, e os personagens que os compõe, que identificamos de forma clara e límpida o que lhes diferencia – e é impossível ler Girard sem ser tocado pela perfeição da Paixão daquele que aceitou ser vítima para nos salvar.